domingo, 3 de dezembro de 2017

CAVALEIROS ENTRE O CORDEL E A HISTÓRIA (1)


Vladimir Carvalho (2)


                Quando Edmar Oliveira decidiu-se a vir aventurar-se no Rio de Janeiro nos ainda duros finais dos anos de 1970 já se encontrava sobrecarregado de nordestinidades: a seca, o cangaço, domínios holandeses, coronelismo, marchas revolucionárias, a fama dos cordéis e da literatura regionalista de décadas passadas. Não esquecera tampouco as boiadas, os vaqueiros, o folclore e o velho Parnaíba com suas curvas e ilhas passeadas por sonolentos vaporetos, enfim a cara e a memória do seu avoengo Piauí. Tudo aquilo e as histórias que curtira desde menino fustigavam a sua sensibilidade como a exigir o seu testemunho. Entretanto, não lhe pesavam no espírito essas lembranças; pelo contrário, as acolhia com uma espécie de estranha ternura, um paliativo enquanto afiava as garras no conhecimento da psiquiatria, esta, sim, ferramenta de trabalho que lhe inseria em novo cotidiano como médico engajado na fervilhante metrópole.

                Foi adiando como pôde o embate com o memorial que trazia no seu baú até que finalmente resolveu sentar-se e escrever o que latejava em seu íntimo. Veio como um jorro o seu primeiro romance, Terra do Fogo, que publicou em 2013 (Vieira & Lent Casa Editorial, Rio de Janeiro) sobre uma Teresina tentando acompanhar as mudanças prementes do país e fazer a sua reforma urbana, nem sempre favorável aos pobres e humildes.

                Os melhores dotes de sua obra inaugural, que não era indiferente a certos aspectos do épico, ressurgem agora de forma mais assumida em seu novo romance, este Sitiado (Chiado Editora, Portugal, Brasil, Angola) já nas livrarias. Sempre honrando os fatos da História, no caso a marcha célebre da Coluna Prestes, empreendida em meados dos anos de 1920 – em especial se ocupando dos episódios da sua passagem pelas terras do Piauí e do Maranhão – Edmar Oliveira leva a cabo um urdido jogo de contraponto seguindo os passos de seus personagens, ziguezagueando entre o real histórico e o imaginário popular num aliciante vai e vem lúdico e prazeroso que prende e envolve o leitor.

                Com essa estratégia narrativa, é bom dizer, plena de liberdade poética, vemos os homens da Coluna e mesmo as gentes do povo transformarem-se nas figuras medievais dos cavaleiros andantes das Cruzadas. Mouros e cristãos em ação, às vezes eletrizantes, que pela prodigiosa fusão literária nos fazem lembrar as astúcias estéticas que só o cinema pode nos proporcionar. Com roldãos, carlos magnos, oliveiros e ferrabrazes despudoradamente entrelaçados e confundidos com os nossos contemporâneos Luiz Carlos Prestes, Miguel Costa e Juarez Távora. Ao sabor desse compasso binário, a fabulação segue estribada nas reações e nos sonhos do matuto Teodoro, alma pura do povo, mas esperto e imaginoso amante de estórias, ouvido colado na oralidade, inveterado leitor que é de cordel e crente em padim Cícero. Uma natureza assim seria também uma porta aberta para os eflúvios de utopias salvadoras, de mágicas transformações, de mitos de terras prometidas e, portanto, logo acreditou que “Prestes era muito homem para vadear o mar-oceano e virar a Oropa em frege”

                Como soldado, Teodoro dormia na trincheira e sonhava como se estivesse nos embates antigos, coisas filtradas de suas leituras, que se misturavam com a realidade em que vivia as agruras de sua gente. Acordado ouvia falar das peripécias da Coluna aparecendo e desaparecendo, cegando as tropas inimigas com as manobras geniais do Cavaleiro da Esperança, que punha em prática estratégias desconhecidas como o nó húngaro e as falsas retiradas que desnorteavam o adversário. Mas também ficava a par dos desatinos e erros da Coluna, como foi o caso do ataque a Piancó, na Paraíba, onde os revoltosos encontraram forte resistência e deixaram para trás o episódio para sempre lembrado da morte do padre Aristides, que liderava a defesa da cidade. Uma mancha para sempre no currículo de Prestes. Tudo isso e muito mais é matéria prima nas mãos hábeis de Oliveira. Em estilo simples, fluente e bem-humorado, manobra ele numa clave próxima do realismo mágico, abrindo espaço para insuspeitados e sedutores personagens, alguns retirados da vida real e da crônica pródiga dos sertões de sua região. É o caso de um certo Manuel Bernardino da Mata, fascinante pelo que encerra de instigantes contradições, sendo ao mesmo tempo, por artes de uma curiosa dialética, socialista militante, espírita e vegetariano! Por isso mesmo tornando-se afamado e recebendo a alcunha de Lenine do Maranhão.


                Um aspecto de Sitiado que veio enriquecer e lhe trazer especial colorido foi o recurso em que acoplando História e estória recorre à literatura popular da lavra do gênio absoluto do cordel nordestino, o paraibano Leandro Gomes de Barros – seu proto criador, fonte em que até Ariano Suassuna chegou a beber. São de Leandro, sobretudo de sua História da Donzela Teodora, as epígrafes de abertura de cada capítulo do romance, concorrendo para o clima em que verdade e imaginação dominam todo o entrecho, o que o coloca entre os melhores da atual safra.

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(1) Publicado no Correio Braziliense em 18.11.17
(2) Cineastra, professor de cinema da UnB, escritor.

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