domingo, 24 de janeiro de 2016

ANIMAIS SEM-RABO



Ilustração: 1000TON

(Edmar Oliveira)

Eu sempre desconfiei de que quem gosta muito, muito, muito de animais, gosta pouco de gente. Antes de me condenarem prestem atenção no muito, muito, muito, que talvez não seja o caso de quem tem um cachorro, um gato, uma tartaruga, ou outro bichinho de estimação. Falo aqui dos que transformam a causa dos animais na causa mais importante do planeta. Pois foi exatamente isso que a câmara de deputados do Estado do Rio de Janeiro decidiu aprovar como lei. Parecendo que o estado não tem qualquer outro problema mais importante, nossos nobres deputados proíbem o transporte de tração animal. Carroças, burro de carga e jumentos não podem mais serem usados como sempre foram, até mesmo antes do jumento carregar Maria e o Menino Jesus nas costas. A partir de agora José tomaria uma tremenda multa.

Ora, afora os ricos que criam cavalos em haras, os pobres sempre tiveram esses animais para a função de transporte. Recentemente, no nordeste, a facilidade de comprar motos levou a população a abandonar os animais usados para tração. O que gerou um enorme problema. Jumentos e burros são abandonados pelos donos e vagam pelas estradas do nordeste. Aqui no Rio, com a lei, deve acontecer fenômeno parecido. Afinal quem tem esses animais visam sua utilidade na tração do próprio transporte ou de carga. Quisesse nossos nobres deputados ajudar essas criaturas de Deus, uma tara de carga máxima podia ser instituída, jamais a proibição. Afinal, a função de tração animal foi o que levou à domesticação dessas criaturas.


Assim, os que gostam muito, muito, muito de animais regozijaram nas suas associações de proteção aos animais. O cavalo, o burro e o jumento foram aliviados de sua carga e da tarefa escrava. Que façam uso de uma picape para o transporte, jamais ousem submeter o animal ao tamanho suplício da carga.

Eu, aqui com meus botões, acho que os burros sem-rabo vão aumentar. Burro sem-rabo, como são conhecidos os humanos que arrastam uma carroça no muque, são os pobres transportadores que nunca puderam comprar um animal para facilitar o seu trabalho. E eles vão aumentar porque os muitos que não podem comprar um carro vão continuar arrastando as suas carroças com a tração humana, já que a tração animal foi proibida.


E não tem lei pra proteger os humanos que foram transformados em burros sem-rabo. Isso não incomoda nem um pouco aos que gostam muito, muito, muito dos animais...






Na cama vermelha de Paulo Villela






AQUECIMENTO GLOBAL NO PIAUÍ

desenho:  Izânio Façanha
em: http://izaniocharges.blogspot.com.br/search?updated-max=2011-10-02T10:36:00-03:00&max-results=7&start=7&by-date=false

(Edmar Oliveira)

Com a elevação da temperatura no globo terrestre, cientistas avaliam que, em breve, algumas regiões da face da terra serão impróprias à vida humana. Uma dessas faixas pegaria a savana africana, próxima ao deserto do Saara, já ele inabitável – a não ser por beduínos nômades, que encontram aqui e ali um oásis onde podem recompor energias.

Eu me pergunto é quando Teresina entrará para essas faixas inabitáveis. Toda vez que eu volto à terra, sinto um calor maior. E não parece que estou inventando. O calor domina, cada vez mais, a reclamação de todos, que só minora em goles inevitáveis de uma cerveja bem gelada, que só é gelada assim nos botequins de Teresina. As cervejas que têm me socorrido, cada vez mais com maior frequência, são empoadas ou passadas na farinha, como se diz por lá. E parece que o calor, cada vez também mais, ajuda no choque térmico que proíbe a cerveja supergelada de congelar. Precisa só da habilidade do quitandeiro fazer uns movimentos ritmados, que impedem o congelamento. E isso cada um faz melhor do que o outro.

Mas me preocupo com o tempo em que o excessivo calor proíba a ida das pessoas aos bares. Tem um prefeito que adora derrubar árvores para que a cidade seja reconhecida como a mais quente do Brasil. Os planos para ampliar as pistas de rolamento da Avenida Frei Serafim pode dar fim a árvores centenárias que amenizam o clima. Não sei como está a situação de uma praça arborizada no Parque Piauí, que o prefeito queria fazer uma estação rodoviária – derrubando as árvores, claro!

Nesse ritmo, o prefeito da serra elétrica promete antecipar o período de calor que inviabiliza a vida humana na cidade. O “efeito Dubai” para os mais ricos salvará apenas uma minoria endinheirada. Mas os cidadãos dos subúrbios não resistirão.

Chamo aqui de “efeito Dubai” a cidade de prédios refrigerados e carrões idem no chifre da África. Quase não se ver pedestres em Dubai, no seu calor de deserto. A parte da cidade nova em Teresina também é assim. Prédios e escritórios refrigerados e carrões também. O “efeito Dubai” não permite sentir o calor real. Preocupo-me com os ciclistas da cidade velha que pedalam dos subúrbios ao Mercado Velho. Ou com os viajantes de ônibus, que a câmara de vereadores acabou de proibir a refrigeração dos coletivos. Os edis querem o povo no quentão. Preocupo-me com os pedestres que insistem em andar no centro da cidade, onde até os casarões cinquentões e refrescantes foram transformados em estacionamentos sob o sol inclemente do equador.

Até a mangueira que fazia sombra na porta da minha antiga casa, na Campos Sales, não existe mais. E as mangueiras e oitizeiros do bar do Pernambuco no Mafuá, já estão deixando o sol interromper a sonolência depois de uma mão de vaca ou panelada na temperatura da gordura não congelar. A comida tem de ser bem quente, fria é a cerveja.

Não sei por quanto tempo a cerveja gelada nos salvará de habitar a amada cidade, que esquenta a olhos vistos e ao suor sentido. 













Um dia a casa cai



Foi o Fórum de Davos quem denunciou. Os donos do mundo admitem que, mantendo a situação atual, daqui a quarenta anos os oceanos terão mais plásticos do que peixes.

A baía de Guanabara já morreu e é uma boca banguela do Levi Strauss cheia de detritos. Quem vai ao Museu do Amanhã – obra arquitetônica do mestre Calatrava – fica horrorizado com a quantidade de garrafas e sacos plásticos que se acumulam num ângulo de noventa graus que o píer do museu faz o cais. As Olimpíadas acontecem daqui a pouco e nada se fez para a despoluição da baía, onde acontecerão provas de canoagem. Certamente a baía da Guanabara já tem muito mais plástico do que peixe. Imaginemos os oceanos assim poluídos. Parece que o homem vai destruindo o seu planeta de forma galopante.

Não estarei mais aqui para assistir este caos, mas imagino meus netos num Rio sem praia. Pode ser que o apartamento de frente pro mar perca valor, pelo cheiro da putrefação dos oceanos. E certamente o impacto na alimentação por pescados será grande.

Stephen Hawking, numa sobrevivência teimosa na sua cadeira de rodas, preocupado com o futuro da humanidade, vaticina que o homem só sobreviverá se trocar de planeta. Acho que não conseguiremos isso em quarenta anos. E há a possibilidade de destruirmos o planeta antes de encontramos outros com condição de moradia.

Não seria mais prudente tentar consertar a casa velha, antes que caia?

  

(Edmar Oliveira)

Poder nuclear por Gervásio







SEO CADINHO (mas uma deliciosa história real do Aderval)

Bananas pra dar e vender: S. Tomé, Roxa, Pacovã e Velhaca


(Aderval Borges)

Em meados dos anos 1980 deixei um cômodo emprego na assessoria de imprensa de uma grande instituição financeira sediada em São Paulo, capital, e investi o que não tinha na montagem de um viveiro para produzir mudas de seringueiras. Minha pretensão era vender parte das mudas para pagar o empréstimo de um equipamento de irrigação, cobrir os gastos de formação do seringal que tinha a intenção de plantar, pagar meus quatro ajudantes e sobreviver com o que sobrasse. Só deu para iniciar o plantio do seringal. A então ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, baixou uma Medida Provisória para segurar todo o dinheiro dos fazendeiros aplicado nos bancos e ninguém tinha como comprar minhas mudas.

Vivia atropelado com muitas dificuldades, principalmente financeiras, e mal conseguia dormir com tantas preocupações. Amor é amor! Rosana deixou seu trabalho em Americana e veio morar comigo na casinha do sítio, na qual cresci e da qual só saí quando chegou a hora de rumar para os estudos na cidade. Numa pitanga das piores, ela aprendeu a fazer bijuterias e por um bocado de tempo seus colares, brincos e outras peças amenizaram um pouco nosso sufoco econômico. Como minhas vendas estacaram por culpa da porralouca da ministra da Fazenda, tive de dispensar todos que trabalhavam no viveiro e, na medida do possível, tentei fazer o trabalho deles sozinho. Claro que não tinha tempo nem para comer. Perdia horas de sono planejando o monte de tarefas que teria para o dia seguinte.

Para piorar ainda mais as coisas, passei a receber visitas frequentes de Seo Cadinho, um morador que chegara recentemente à região. Com seu bigode fino, sempre muito bem aparado, vinha me pedir coisas ou dar seus pitecos sobre o que eu devia e não devia fazer face às dificuldades financeiras. Como o homem se dizia entender de tudo – e era lícito que não entendia de quase nada – os amigos com quem me encontrava na venda (misto de boteco e mercearia) do Agenorzinho da Zilda o chamavam de Seo Cadinho. Claro que seu nome real era outro. “Seo Cadinho” porque, segundo suas próprias palavras, sabia cadinho disso, cadinho daquilo.

Seo Cadinho adquirira um pequeno sítio às margens do reservatório da Represa da Água Vermelha, que alimenta uma das cinco sucessivas hidrelétricas do rio Grande, na divisa do Estado de São Paulo com o Triângulo Mineiro. Fazia visitas com frequência à minha propriedade para levar mudas de várias espécies de bananas que cultivamos desde a época do meu pai. A aflição maior dessas suas visitas ao viveiro era quando ele procurava prender minha atenção para pregar sobre sua crença panteísta nos “pudê da natureza”. Tratava-se de uma mescla sincrética de tudo quanto é porcaria proveniente de todos os tipos de religiões existentes no Brasil: catolicismo, igrejas evangélicas, espiritismo kardecista, umbanda, quimbanda, candomblé e o cacete a quatro. Sempre afobado, desejando imensamente dispensá-lo, eu ficava agoniado quando ele começava com aquele mesmo discurso: “Sabe de uma coisa, Seo Menino (nunca me chamava pelo nome), os pudê da natureza é um troço medonho...” Deus do céu, como eu desejava trucida-lo naqueles momentos!

Como sabedor de tudo, Seo Cadinho encheu o saco de muita gente pelo vilarejo e cercanias. Nos meus encontros pontuais com a turma que frequentava a venda de Agernorzinho da Zilda, não havia que não se queixasse de sua impertinência e infinita chatice. Sabia-se pouco sobre seu passado. Teria morado na região de Barretos, onde se casara e tivera um único filho. De vez em quando viajava para lá, a fim de visitar esse filho. Sobre a mulher dizia apenas: “Acabô meu parpite por muié.” Não se sabia ao certo quem deixara quem, mas que se separara da cuja há décadas.

As más línguas da vila diziam que o homem era endinheirado. Tinha valores aplicados e boa aposentadoria. Deveras, pois logo construiu no seu sítio um rancho com boas acomodações, de encher os olhos daqueles caipiras que residiam em modestas casinhas de pau a pique. Esse seu rancho fez fama. A peãozada mais jovem batia para lá todos os sábados e feriados, cada qual levando sua varinha de pesca. O curioso é que ninguém voltava com peixe. Não porque o reservatório fosse menos piscoso naquele trecho. Ocorre que a pescaria era mero pretexto. Lá chegando, Soe Cadinho os esperava com peixes fritos e muitos engradados de cerveja. Cada qual pagava pelas bebidas que tomava, mas os peixes eram por conta da casa. Enquanto tomava umas e outras, a turma se reunia em torno de uma mesa de jatobá para jogar carteado. A dinheiro, claro. Seo Cadinho cuidava, a um só tempo, das apostas, dos peixes fritos e de não faltar cerveja nos copos.

Pelas tantas, dizem as más línguas (sempre elas!), Seo Cadinho oferecia um “cadinho mais” de qualquer coisa aos retardatários. Como nunca tive tempo de frequentar as jogatinas por ele promovidas, não faço ideia do que era esse algo mais. Só sabia que o homem gostava muito de bananas. Bastava eu conseguir uma variedade nova, que aparecia para pedir uma muda. Dizia que era uma fruta abençoada, um “dom da natureza”. Seu bananal, que dava nas margens da represa, era farto e diverso. Dentre as variedades que cedi a ele estavam: São Tomé, nanica anã, ouro, missouri, prata anã, pacovã, marmelo, roxa e velhaca. Além do bananal, tinha um grande criatório de galinhas caipiras. Toda sua produção de bananas e ovos era vendida na venda do Agernorzinho da Zilda, que segundo as más línguas é capaz de vender até a Zilda.

Mas como tudo que é vivo um dia morre, Seo Cadinho foi-se por parada cardíaca. Foi encontrado em decúbito dorsal, justamente em meio ao bananal que tanto prezava. Só então os moradores da vila puderam conhecer seu filho. Um camarada de uns trinta anos, bem apessoado, acompanhado por uma mulher vistosa e dois meninos manhosos vestidos com roupas idênticas. Viera apenas para o enterro? Não só. Embora tenha dito no cartório da cidade, para que quem se prestasse a ouvi-lo, que o pai fora “a vergonha da família”, abocanhou cada centavo do que o homem tinha aplicado na agência bancária local e tratou logo de vender o sítio com tudo que tinha dentro: o rancho, o bananal e a criação de galinhas.

Tão logo Seo Cadinho bateu as botas, Agenorzinho da Zilda, que de besta não tem nada, tratou de adotar sua estratégia de promover carteados movidos a muito peixe frito e cerveja. Para isso comprou até uma chácara próxima da vila, onde não tem por perto a vigilante Zilda para controlar as cervejas e pingas que toma enquanto serve os convidados. A única coisa na qual não imitou do falecido é no tocante ao “cadinho mais” que o outro oferecia de brinde ao final das jogatinas. Se alguém brinca a respeito, Agenorzinho responde ríspido: “Posso oferecer, sim, desde que tu coloque tua mãe no rolo.”
Sobre o que Seo Cadinho foi ou deixou de ser, não me meto a besta de escrever mais nada. Vai que o defunto resolve me atazanar o sono, que não é lá essas coisas, com sua conversação sem termo sobre os “pudê da natureza”. Que ele descanse em paz, com ou sem cadinho a mais! 



Old spider man de 1000TON







No coração da noite estrelada

(Geraldo Borges)


Continuariam o romance? Isso pertencia ao futuro, que não passava, como a poesia, de uma viagem rumo ao desconhecido.”

            A leitura do romance de Rogério Newton, editora Nova Aliança -  No coração da noite estrelada, sim, é um romance,  cujo roteiro nos leva do começo ao fim, dentro de um ritmo, se não de grande expectativa,   nos conduz pelas ruas e becos de uma velha cidade, Oeiras, como se o leitor fosse levado pela mãos de um cicerone. E, além do mais, não foge da estrutura do romance moderno e contemporâneo obedecendo a maioria das funções da narrativa.

 Enquanto isso a história vai se desenvolvendo através de um rápido reencontro de jovens que aproveitam uma greve nacional de estudantes  para descansar em suas casas, na velha cidade de Oeiras. Aí começa o romance, que deixa transparecer claramente o seu tema.

Trata se de uma história de duas gerações que se contrapõem: a aristocracia rural decadente, tentando perpetuar os valores consagrados pelo seu poder cultural e político, transferindo os para as novas gerações. Essas, mesmo relutando aos velhos valores, não conseguem romper diretamente com a família. Existe muito de sentimental na construção psicológica dos personagens, o que caracteriza um apego quase mórbido pelas ruínas da cidade.

            No romance existem alguns personagens símbolos, arquétipos de uma época, como, por exemplo, o padre reacionário, o eremita, característica  bem marcante de um cidade provinciana.

 Do meio para o fim do romance, após o autor já ter descrito bastante o paisagem urbana e arruinada da velha e antiga capital do Piauí, os personagens principais do romance resolvem, então, editar um jornal nanico. Para publicar suas idéias, dizer alguma coisa, mostrar que estavam vivos. Sacudir um pouco o marasmo da província. As idéias do jornal foram um achado para dar ritmo ao enredo do romance. Um fio de meada  para  sair de um labirinto das ruínas,  e entreter os personagens principais; o romance passa a ser um romance de idéias e não mais um passeio turístico.  Cada personagem ficou encarregado de um tema O romance chega ao seu apogeu a essa altura. Aí aparece uma dificuldade, dinheiro, e o jornal vai sendo protelado.

            Eis que aparece um personagem poeta, de repente, já quase no fim do romance, de nome Claudio. Parece até que o romance vai recomeçar. Aparece também outra personagem chamada Paloma. Claudio e Paloma, através de algumas páginas do livro tomam conta do romance e compõem um belo conto, dando maior vibração ao romance, colocando uma nova encruzilhada ao destino  dos personagens, que povoam o romance.  Não sei se o significado dos nomes desses dois personagens dizem alguma coisa  através do inconsciente do autor na tentativa de radicalizar a mensagem ideológica da narrativa. Mas de súbito eles aparecem e desaparecem  das paginas  do romance, cada um  de uma forma mais violenta. Ela foi morta pela repressão por que optou pela luta armada , e ele morreu de um acidente de carro.

            Finalmente a greve terminou e com ela o romance. “Sofriam com a separação e com o jornal marcado para nascer no dia em que pegariam, de volta, a estrada. Firmaram um pacto; um deles imprimiria o jornal e mandaria exemplares para cada um e para Oeiras. Não esperassem as férias. Era preciso que a cidade recebesse logo aquele biscoito fino, especialmente dedicado a ela.”(capitulo XXXIII)

            A promessa do jornal  simbolicamente, é o elixir do conhecimento que a nova  geração de estudantes adquiriu em sua experiência, e cumpre a sua missão tentando passar para  a sua comunidade,  no caso especifico, a cidade de Oeiras, contribuindo para que a mesma,  não mudando a sua moldura antiga, pelo menos, tenha uma nova visão do mundo. No entanto fica a pergunta. Será se o jornal sairá do primeiro número? Bom. Entre romance e realidade, há muita coisa que não sonha a nossa vã filosofia.






encontro dos rios



das ribanceiras
avisto as cores
te enfeitando
da aurora ao pôr do sol

rios fluindo
orlas douradas
do Poty ao litoral

navego em verso
e escuto a música alegre
das águas

(William Melo Soares, de Nadança dos Peixes, Bienal editora, 2015)






Bowie do mestre Aroeira





domingo, 10 de janeiro de 2016

Paulo Villela


Primeiro PIAUINAUTA do ano chegando com os votos do Paulo Villela






TROQUE SEU SMARTPHONE POR UM BEBÊ

ilustração: 1000TON


(Edmar Oliveira) 


A humanidade começou a se desinteressar por sua continuidade. O alarme veio do Japão. Aquela terra tão miúda, que nos meus tempos de juventude preocupava era a quantidade de gente que havia por lá.

Pois bem, as folhas noticiam que o governo japonês está criando espaços públicos para namoros coletivos. Os espaços visariam facilitar o encontro de jovens para que uma relação estável possa acontecer e com isso promover um acasalamento. Apostam que os afetos promovidos nesse acasalamento possam gerar filhos. Uma coisa que acontecia normalmente com tanta frequência, que levou os chineses a limitarem um filho por casal. Essa proibição chinesa também já foi abolida – talvez acompanhando o que acontece no Japão.

O que os japoneses descobriram é que a taxa de natalidade vem caindo assustadoramente. O modo de vida moderno tende ao individualismo e às relações virtuais através dos aparelhos interativos que foram impostos à vida moderna. Basta um indivíduo e um smartphone para uma relação digital com o mundo. Com isso o contato entre dois humanos, de forma analógica – digamos assim – caiu vertiginosamente. As relações entre duas pessoas são efêmeras e necessárias às relações sexuais – cada vez mais bissexuais também – desprovidas de interesses mais profundos necessários à geração de outros humanos. Hoje, no Japão, um quarto da população já tem mais de sessenta anos. Estima-se que em cinquenta anos – mantido o ritmo atual de natalidade – essa relação ultrapasse os cinquenta por cento. E certamente isso inviabilizará a economia e os programas sociais para sustentar os velhos.

Assustadoramente poderíamos viver a solução preconizada em um antigo filme de ficção, cujo nome não me lembro agora. No filme, a terra no futuro estava devastada não permitindo a agricultura e pecuária. Então, os velhos – chegada à idade estabelecida, como naquele também antigo desenho dos dinossauros – eram levados a uma sala de cinema, com lindas imagens do que a terra fora um dia, para morrerem lentamente e sem dor – recordando o belo passado que a humanidade foi um dia. Eram então processados industrialmente para alimentar os mais jovens que viviam até o momento de virar a própria comida. Este era o segredo do filme, para nós espectadores. No filme matavam-se os velhos para alimentar aos vivos. Na vida real podemos ter que matá-los para alimentar a economia.

Parece que os japoneses estão preocupados com a ideia da solução final que talvez seja aplicada aos nossos velhos que teimam em viver além do que permite a economia.

(Seria melhor algo diferente do que ocorre aqui entre nós no combalido sistema de saúde sem o aporte de verbas suficientes. Com menos sofrimento, pelo menos).

E eles identificaram o problema na relação doentia entre os jovens e suas máquinas digitais. Oxalá as casas de encontro públicas, que os japoneses estão criando para resolver o problema de aumentar a taxa de natalidade entre os jovens, deem resultado que evitem uma tragédia na terceira idade. O problema não é só do Japão, mas de toda a porção “civilizada” do planeta.
Certamente você já viu um casal num restaurante, que ao invés de estar num agarra-agarra ou mesmo conversando, estão com dedos e olhos nos smartphones maravilhosos, preferindo os encontros digitais aos, digamos, analógicos. E, se os japas estiverem certos, teremos menos nascimentos mundo afora, ameaçando a própria humanidade.

Curioso, se não hilário, foi o indicador econômico que disparou a desconfiança dos japoneses de que estavam nascendo menos crianças do que a quantidade de velhos que teimam em viver: a quantidade de vendas das fraldas geriátricas passou a ser maior do que a venda de fraldas para bebês. Uma merda de indicador econômico, mas eficiente.  


Talvez um aviso como o do cartaz “Não temos wi-fi, conversem entre vocês”, colocado nos ambientes em que não é permitido fumar, tenha a mesma eficiência do que as casas de encontro japonesas. Ah!, e poderia ter um adendo: “é permitido fumar para quem estiver num relacionamento sério com o parceiro do lado”. 




Salgado Maranhão

50)
Daqui desta estação desdobrada,
em que a manhã me acolhe em
seu design (e a noite aceita a morte
sussurrada), sigo a tecer o inalcançável.
E seguirei tocando a primavera com
o peso das coisas vivas. basta a língua
navegável. Basta a flor do havido. E
as palavras feitas de aranhas, saltando
o muro dos mortos. Ainda há tempo
de crescer com as uvas. Ainda há luz
nesta orla feita de azuis. E the end(s).

(SALGADO MARANHÃO)




CANTIGA DE ENTRADA




No ano que se inicia

Sob o signo da alegria
Dê-me as sobras do seu tempo
E uma palavra de alento
Que me instigue a prosseguir
E motivos pra sorrir.
Amor? É querer demais:
Eu seria bem capaz
De não saber merecê-lo
Visto o grande desmantelo
Que ronda o meu coração.
Se possível, dê-me a mão
Para um carinho fugaz...
Estou pedindo demais?
Perdoe-me: perdi o norte...
Me deseje boa sorte!


(Cinéas Santos)



VIVA A VAIA

poema de Augusto de Campos


(Paulo José Cunha)

A vaia é absoluta. Não existe vaia relativa, meia vaia, vaia e meia,  apenas vaia, pequena ou grande, curta ou longa: vaia. A vaia é incontrastável, e não comporta argumento em sentido contrário. Correção: existe, sim, um único argumento contra a vaia: a força. Mas como força não é argumento, retornamos ao ponto inicial: é impossível argumentar contra a vaia.

A vaia é a mais democrática ação coletiva. Seu poder reside na fragilidade de quem vaia. Os autores de uma vaia não querem bater, machucar nem matar: querem... vaiar.

Axioma: se toda vaia é contra e não existe vaia a favor, igualmente não existe anti-vaia.

A vaia é sempre dirigida a um núcleo de poder, corporificado no ente que o exerce. Por isso não existe vaia contra o fraco ou o oprimido. Detentores de poder nem opressores vaiam, mas são passíveis de ser vaiados.

Toda vaia é coletiva, não se tem notícia de vaia individual. Portanto, toda vaia expressa uma inconformidade de natureza social, e assim precisa ser entendida e analisada. A vaia nunca pode ser debitada a um “pequeno grupo de agitadores”. Se assim fosse, qualquer pessoa no interior de uma multidão reunida sem motivação reivindicante seria capaz de mobilizá-la e fazê-la voltar-se, em uníssono, contra algum núcleo de poder. Tal reação não é automática. Para eclodir e se converter no incêndio da vaia é preciso que o rastilho encontre condições favoráveis. Seu combustível é algum tipo de inconformidade, explícita ou latente. Sem isso, o “puxador de vaia” é sancionado pelo grupo, silenciado ou excluído.

A vaia é a expressão inconsciente de um mal-estar consciente ou inconsciente. Ela expressa, na forma de onomatopéia uníssona, um sentimento coletivo de difícil expressão verbal. A propósito: a vaia prescinde da palavra. É comunicação em estado puro, energia galvanizada instintivamente. 

A vaia só funciona em seu momento. Não tem efeito quando gravada ou relatada. Mas atenção: a vaia reverbera. E tem o incrível poder de se multiplicar em vaias maiores em intensidade e duração se os fatores que motivaram o apupo original não forem identificados e eliminados. 

A vaia é universal, está presente em todas as culturas. Como expressão primária e instintiva, é o mais genuíno produto do inconsciente coletivo. Traduz uma verdade que prescinde de suporte semântico. A vaia é uma reprovação cuja origem se situa no silêncio individual, mas que só consegue se expressar de forma coletiva. É como o galo do poema de João Cabral: “Um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará sempre de outros galos./ De um que apanhe esse grito que ele/ e o lance a outro; de um outro galo/ que apanhe o grito que um galo antes/ e o lance a outro; e de outros galos/ que com muitos outros galos se cruzem/ os fios de sol de seus gritos de galo(...)”.

Paradoxalmente, a vaia é consagradora: não há registro de vaias contra anônimos. A única exceção a essa assertiva ocorre quando anônimos assumem papéis de agentes de um poder opressor, injusto ou impopular (como aquele alguém que tenta furar a fila ou um policial qualquer numa operação repressiva.  

O aplauso não neutraliza a vaia, apenas a emoldura. E como a vaia é incontrastável e irreversível, o aplauso não é seu contraponto. Pois é possível vaiar um aplauso, como é igualmente possível aplaudir uma vaia, mas nunca vaiar uma vaia, neutralizá-la ou convertê-la em aplauso.

Por último: o aplauso passa, mas toda vaia é eterna e inesquecível. 

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Paulo José Cunha é jornalista




Jota A







UM PORRE DO PERU

(Aderval Borges)

Depois de décadas enfrentando os atropelos das grandes cidades, dona Eugênia e o marido juntaram as aposentadorias e alugaram uma chácara na pequena Indiaporã, no noroeste paulista. Ali ela pôs em prática o sonho de criar aves domésticas: galinhas de várias raças, patos, marrecos, capotes (ou galinha d’angola), codornas, um casal de gansos, um casal de faisões e um único peru. Todos foram trazidos de ônibus em sacolas – ainda pintinhos, claro – de lojas da capital.

O filho mais novo do casal, Valtinho, ainda morava com eles. Logo que assentaram a mudança, o rapaz, que gostava de umas e outras, tratou de se juntar a uma turma local que tinha gostos similares: Zé Tão, Quati, Agenorzinho da Zilda, Amarelo, Meleca e os Primos. “Os Primos” eram dois irmãos figuraças que chamavam todos de primos. E, como tal, a população os chamava igualmente de primos, melhor dizendo, de “Us primu”. Valtinho passou a seguir essa trupe para baixo e para cima. E, como eles, virou habitué das zonas de meretrício da região.

De vez em quando os companheiros apoitavam em sua casa na chácara para esvaziar uns tantos engradados de cerveja. Enquanto papeavam, alguns ficavam de olho naquelas aves todas. Sabiam que dona Eugênia não mandava nenhuma delas para a panela. Nem consumia seus ovos, que eram todos destinados à chocadeira elétrica para aumentar ainda mais o criatório.


Palmito de guariroba, pequis e a galinhada pronta


Um dos pratos mais saboreados pela culinária regional é galinhada com pequi e palmito de guariroba. Feita em grandes panelas, com diversidade de temperos, dentre os quais muita pimenta bode verde, que dá sabor característico à cozinha caipira. Mas para os caipiras a galinhada só é verdadeira quando elaborada com aves furtadas de algum criatório. O dono das aves é convidado a participar da comilança, mas só fica sabendo que as aves eram suas depois de tê-las digerido. 

Pensaram fazer o mesmo com dona Eugênia. Para não ferir tanto seu amor pelas aves, decidiriam passar a mão apenas no peru solitário, que não tinha outra função senão soltar aqueles glugluglus grotescos quando alguém assobiava. Para justificar ainda mais a iniciativa ilícita, optaram por fazer a galinhada de peru na noite de Natal e, também para não fugir à tradição, a dona seria convidada a saboreá-la.

Enquanto Valtinho e parte da turma jogava conversa fora para distrair dona Eugênia, Zé Tão e os Primos foram para a casa destes preparar o prato. Como reza a tradição, o peru – a essa altura já surrupiado da chácara – devia ser embebedado para amolecer a carne. Para isso, decidiram utilizar pinga artesanal envelhecida em barril de imburana, trazida da cidade de Iturama, no Triângulo Mineiro.

Davam uma dose para o peru e cada um tomava uma da boa pinga. A certa altura, acharam um desperdício dar uma pinga tão qualificada para aquela besta do peru beber e resolveram os três matar o litro de cachaça. Mas tinham outro litro de reserva e decidiram abri-lo também. Enquanto matavam o seguindo litro, continuavam a picar cebolas, alho, pimentões e outros ingredientes.
Pelas tantas, no horário combinado Valtinho e os demais da trupe que se encontravam na chácara com dona Eugênia, amontoaram-se numa camionete e bateram para a casa dos Primos, a fim de se locupletarem com a tão aguardada galinhada. Dona Eugênia e o marido foram juntos. Mas encontraram a casa às moscas. Zé Tão roncava numa rede. Os Primo, cada qual numa cadeira de descanso, babavam lá pelo terceiro ou quarto sono. A mesa estava repleta de temperos picados, mas o peru, vivinho da silva, andava trôpego pela sala com uma das asas abertas para se equilibrar depois das doses de cachaça que haviam lhe metido garganta abaixo.

Dona Eugênia ficou revoltada quando percebeu a armação toda e proibiu os amigos do filho de continuar frequentando a chácara. Agarrou seu mimado peru e bateu para casa junto com o marido. Mais ou menos recuperados do porre, Zé Tão e os Primo desistiram de vez da galinhada, mas propuseram aos amigos um bom programa alternativo: irem todos para o puteiro de uma cidade vizinha celebrar a noite de Natal com aquelas boas senhoras que a todos acolhem, seja nos momentos de euforia ou de fadiga.

Se alguém tiver algum galinheiro para surrupiar umas penosas, segue a relação dos demais ingredientes para a galinhada: arroz lavado, alho, cebola, cenouras raladas, pimentões picados, palmito de guariroba picado, vários frutos de pequi, açafrão da terra, salsa, cheiro verde, pimenta de cheiro e... cachaça da boa.




Brizola por Gervásio








Bordas da Canção



Aquela estrela
Que caiu de uma palmeira
Sobre a areia branca

Do caminho do riacho
Não mais me guia

Tenho que inventar
Outra estrada
Para o meu sonho viajar
Até atracar nas bordas da canção


(Climério Ferreira)
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desenho: Gabriel Archanjo

Dino Alves