domingo, 20 de novembro de 2011

VIAGEM AO PASSADO V

Edmar Oliveira

Quantas lembranças num só dia”, Geraldo comentava enquanto passávamos no portão do cemitério – “nossos antepassados estão enterrados aqui”. Olhei pelo portão as catacumbas que parecia só ter anjinhos, de tão pequeno que era o local dos mortos. Pensei como devia ser pequena a nossa árvore genealógica ali enterrada. O mato alto dava um ar de abandono àqueles mortos. E com certeza a mãe Velha e o Pedro Solano repousavam em uma daquelas sepulturas.

            Contornamos o cemitério, com a algazarra de meninos que saiam da escola e fomos até o alto, junto ao pátio da Igreja Matriz e do mercado. Já anoitecera, mas ainda cedo para o zunido das muriçocas que anunciavam o ataque noturno. Sentamos na praça do mercado e pedimos uma cerveja. Um pouco de cerveja pede um dedo de prosa e ficamos sabendo, que bem ali naquela quitanda um raio atingiu a rede elétrica matando várias pessoas na cidade. Pedro Solano, o meu avô, e o tio Inácio Teixeira, irmão de minha outra avó, não morreram porque estavam de sandálias de rabicho com solado de pneu, encostados no balcão de madeira da venda tomando pinga. A história, já contada inúmeras vezes desde o seu acontecimento, era repetida por quem devia ser muito pequeno na época, mas contada como se tivesse acontecido há alguns minutos na presença de todos ali.

            Engraçado, pensei, o meu avô Sessé, tabelião da cidade, cidadão da antiga vila de Belém que virou Palmeirais, não era lembrado. Tá bom que ele foi embora para a capital há muito tempo e não se enterrou naquele cemitério. Até sua antiga residência, que abrigava o cartório, não existia mais. Mas ele também não era lembrado. Já o Pedro Solano, matador de bodes, roceiro e contador de histórias, era lembrado por toda cidade como uma lenda viva. E eu lembrava naquele momento do seu sorriso cansado, com um cigarrinho no canto da boca, contando uma lorota e mentindo quando dizia que o “corredor” dianteiro do bote tinha tanto tutano quanto o traseiro. Vovó Bebela, esposa do Sessé, nunca engoliu essa conversa do Pedro Solano. Dizia que ele queria lhe passar a perna do bode sem tutano. E o seu neto gostava do “corredor” do bode. O neto, agora velho, se embriagava nessas lembranças com gosto de tutano e carne de bode guisada no leite de coco babaçu.

            Para que as lembranças tivessem mais gosto, quando voltamos ao “Timbungo”, nosso bar, restaurante e pensão, Zenóbia tinha prepara uma galinha com os temperos de nossa infância. Não sobrou sequer um osso da galinha, que um gato debaixo da mesa ajudava a terminar quando já tínhamos ruído o osso duro da galinha caipira.

            Antes entramos na antiga Usina Elétrica que hoje era uma biblioteca. A Usina de luz continuava iluminando como Usina das Letras. Geraldo fez uma doação do seu livro e o meu já se encontrava na biblioteca. Sentimo-nos queridos filhos da terra, que já que a biblioteca da cidade nos conservava nas suas memórias. Gratos.

            Fomos dormir ainda cedo, que a noite caminha muito devagar naquelas paragens. Geraldo dormiu logo e eu não conseguia, tantas eram as emoções que precisavam de digestão junto com a galinha no estômago. Logo um silêncio se impôs ao ressonar do Geraldo e da cantiga de um grilo que desafiava o coaxar de um sapo.

            Era lá muito longe, um tum tum de um zabumba que coincidia com o bater do pé na terra do terreiro de festa. Saí do quarto para a noite estrelada que parecia amplificar o som que trazia uma concertina marcando acordes no espaço. Não sei o que me deu, mas fui hipnotizado pelo som que o vento da noite trazia. Entrei no carro, baixei os vidros e segui pelas ruas desertas, dobrando nos cruzamentos por onde o vento me trazia a amplificação daquele forró. A cada curva, sem saber por onde ia, o som aumentava. Cheguei.

            Os carros estacionavam num pátio. Os ingressos eram vendidos numa tenda, junto com as bebidas. O ingressante no barracão era marcado com um esmalte fluorescente no braço, para poder entrar e sair quando quisesse. E lá dentro do barracão de palha, os músicos no palco, uma luz estroboscópica rotatória no teto mostrava quadro a quadro, como em fotografia, os casais dançando no salão. Casais de todas as idades, velhos e crianças, no mesmo passo miudinho, cada casal atrás um do outro numa roda anti-horária, como se fosse uma quadrilha sem marcação, muito mais uma mistura de um minueto francês com uma polca boêmia. Claro que na adaptação caipira, que em si trazia a característica daquela comunidade. E não pude deixar de observar que quando me arrisco a uns passos de baião danço muito parecido com o que eu estava assistindo ali nos Palmeirais. Eu sabia fazer aqueles movimentos que, a princípio, pareciam estranhos. Era como se eu carregasse marcado no meu dna o modo de dançar dos meus antepassados. Curiosa observação.

            Volto para a pensão, na beira do rio, na noite estrelada. Desliguei o motor do carro e fiquei a ouvir aquele grilo que insistia em desafiar o sapo, que já coaxava rouco. O brilho da noite nas águas calmas do rio Parnaíba me dava a sensação de ter voltado pra casa. Como que eu só tivesse saído para sentir saudades...             




_______________________
A igreginha e o forró no barracão que mexeram tanto com o coração do cronista...
O último capítulo na próxima edição do Piauinauta.
Se voc~e não leu os anteriores coloque na pesquisa do blog "Viagem ao Passado" (sem as aspas).



Convite


Posted by Picasa
    Todos os leitores do Piauinauta, que estiverem no Rio no dia 1 de dezembro, estão intimados a comparecerem às 19 horas na Livraria do Museu da Republica, no Catete. No prédio do Museu ao lado do cinema. Naquele palácio mesmo que Getúlio se matou.
O von Meduna aconteece em Teresina, mas fala da história da psiquiatria e seus métodos cruentos no mundo todo e que foram aplicados aos desgarrados da seca.
Mesmo os que já tenham adquirido o livro, estão convidados a tomar um vinho comigo e a jogar conversa fora.
Espero vocês lá. Anote na sua agenda. Primeiro de dezembro, às 19 horas.

Delírio de um hóspede de von Meduna

Geraldo Borges

Ora, ora, aqui na  minha casa – de - orates, não estou entendendo nada, nada mesmo do que está acontecendo em redor de meu recinto, do meu reino que conquistei, há muito anos, desde o tempo em que aportei por aqui e finquei a minha âncora de coral, com a idade de trinca e cinco anos, no meio do caminho de minha vida, de nossa vida, como diz o poeta, nostra vita. Aqui, no meio desses muros brancos esverdeados de hera, passei a vida inteira lendo Dante, aquele homem de feições severas, nariz adunco, passeando com ele pelos círculos e labirinto do inferno, purgatório, paraíso, acompanhado de Virgílio, às vezes, de Beatriz, terminei misturando tudo, o texto e a realidade e elegi para mim o meu paraíso, no meio dos meus colegas loucos prenhes de fantasias.

            Agora começo a ouvir uma história muita estranha. Espiões entraram sorrateiramente, como ladrões na calada da noite nos aposentos do meu reino, nos escaninhos de meus segredos e estão planejando uma estratégia para me colocar fora de minha estação, do meu castelo, da minha fortaleza. O plano deles é acabar com a minha dinastia. O pior é que já estou sozinho segurando os fiapos de meus fantasmas marionetes da minha própria pessoa. Os homens de branco estão desaparecendo à sombra das árvores com os seus medicamentos. Meus colegas foram embora.

            Eu vou ter que resistir até o fim. Olhando aqui do meu mirante, pela luz opaca de minha clarabóia, vejo no rubro horizonte nuvens vultosas que se aproximam como vândalos para saquear o meu castelo, o meu mosteiro.

 O que se fala do lado de lá dos muros é que o meu castelo precisa desmoronar, vir abaixo, pois é inoperante, mesmo a despeito de toda a sua história  de glória e de loucura. Só servia para fazer doido, foi construído por um. E aqui é minha estalagem, meu castelo, é aqui que me deleito com o meu Dom Quixote, com os meus moinhos de vento, e, também, com o meu Dante seguindo os labirintos e círculos do inferno, purgatório e paraíso. Os vultos que se aproximam feito nuvens no horizonte querem me surrupiar tudo em nome de uma  liberdade provisória.

            Mas, eu só me retiro daqui morto. Pois eu faço parte do Von Meduna. Considero-me um tijolo de suas paredes, um só não. Talvez eu seja uma parede inteira. O que eles querem fazer do meu reino? Um cavalo-de-batalha. Se Napoleão não tivesse ido embora daqui para a Ilha de Elba cavalgando o seu cavalo branco, com certeza iria me ajudar na resistência ao assalto a minha fortaleza, assim como  Átila, Calígula e outros doidos afamados que nos visitavam aqui no sanatório.

            Cada vez mais os meus supostos inimigos se aproximam, estão chegando mais perto das muralhas de minha fortaleza, já sinto o seu cheiro de óleo e vísceras se decompondo, com certeza estão acompanhados de muitos malucos que deviam estar aqui comigo, de meu lado, vestidos de branco, sorrindo para a sombra das arvores. Eu olho para um lado e para outro e não vejo ninguém para quem eu possa dar uma ordem. Uma ordenança. Vou ter que dar ordem às velhas árvores para que elas me protejam contra as ordens dos meus inimigos que estão chegando.

            Finalmente, eles chegaram, ou, melhor declinando, infelizmente. E entraram sem o menor pudor no meu santuário, no meu sanatório. Tinham a chave do meu reino. Só não tinham a fechadura. Com certeza arranjaram a copia com algum espião. Com um leve estalo tomaram de conta de minha fortaleza e me meteram em uma camisa de força, engessaram o meu corpo, mas a minha mente continuou elástica como uma paisagem se desdobrando à luz da madrugada. Eles estão me levando como se leva um espantalho não sei para onde talvez para espantar os pardais buliçosos.

            Absurdo o que estão fazendo comigo. Por que não me deixam in pace no meu reino de loucura? Se eles ao menos soubessem que eu já fui Napoleão, Julio Cesar, eles não me expulsariam de minha casa branca, teriam medo dos gritos dos gansos. Pergunto para onde estão me levando. Não respondem Dizem apenas que eu estou livre. E me mostram a rua, e acrescentam que no lugar onde está erguido o meu sanatório será edificado um grande shopping para as pessoas normais se divertirem com os seus brinquedos. Ora, ora,  orate frates.
____________
ilustração: Paulo Moura

GIORGI VASARI: A INVENÇÃO DO ARTISTA MODERNO


Edmar Oliveira

A Biblioteca Nacional está apresentando a exposição sobre Giorgi Vasari, dentro das comemorações do ano Brasil-Itália. Giorgi é um italiano de 500 anos. Enquanto a península ibérica descobria e explorava um novo mundo, em busca de riquezas, este italiano estava descobrindo o artista moderno do Renascimento, que saía das trevas da idade média procurando os valores que os antigos tinham do belo.

Se no novo mundo portugueses e espanhóis matavam os nativos na ganância violenta dos valores do futuro, os italianos, arqueológica e delicadamente, desenterravam o Coliseu, os gregos voltavam ao Olimpo, buscando na Antiguidade o sentido da vida negada na idade média. E o Renascimento foi a construção da arquitetura, da escultura e pintura moderna. Vasari foi um deles, mas ficou na história por ter colocado os renascentistas na história. É em torno do seu livro famoso “Le Vite de' più Eccellenti Pittori, Scultori e Architettori” que se coloca a mostra apresentada na Biblioteca Nacional.

Seu livro veio a público em 1550. A Biblioteca Nacional tem uma “edição”, que seria a segunda, de 1568. E mais duas outras. E foi no arquivo da instituição brasileira que a curadoria da mostra foi descobrir as ilações da obra com o que existia na idade que Vasari nomeia de moderna. O trabalho mostra a importãncia da instituição criada por D. João VI. Guiado pela “Le Vite” você pode fazer uma viagem de reconhecimento dos artistas que Vasari tirou do que chamou da “segunda morte”, o esquecimento. Mas descobrimos, surpresos e emocionados, que Vasali, como todo historiador, botou na “fita” seus preferidos, inclusive os contemporâneos Rafael e Michelangelo. Construindo, o autor da história da arte, a história como sua versão. Além de escrever, como já se fazia com os santos e ilustres da sociedade, sobre os escultores, arquitetos e pintores. Nomeados aqui de artistas, foram retirados da vala comum dos trabalhadores braçais. Porque o artista é mais que isso. Na época não era tão evidente como hoje.

Portanto, esta folha recomenda uma visita aos que estiverem no Rio de Janeiro. Pena que a exposição só vá até 11 de dezembro. Curadoria de Elisa Byington, com co-curadoria de Juliana Uenojo e januária Teive. O trabalho da irmã da Olívia, a cantora Byington, é primoroso. Mas tinha que colocar as duas meninas auxiliares, porque a Januária é minha filha, com muito orgulho do pai. Vão lá e confiram.  
____________________
PS - a exposição vai ser prorrogada, o que é ótimo.

Dia triste, nublado e chovendo

Edmar Oliveira

Há pouco mais de um ano recebi um e-mail, aberto para todos os amigos em comum, em que o Negão anunciava secamente: “Comunico que estou com um câncer no pulmão”. Assim, na bucha como era seu estilo. Enquanto escrevo estas linhas o corpo de José Henrique vira cinzas no crematório, como era seu desejo.

Zé era um cara brincalhão, botava apelido em todo mundo, ria e repetia a encarnação que fazia com os amigos. Quem vai me chamar de “Véi das Ó?” Não sei de onde tirou aquilo. Sei  que incorporei tanto o apelido que já me assinava como “das Oliveiras”, invenção brincalhona do meu amigo. “Fala das Ó”, era como atendia um telefonema meu. Nos últimos tempos o “das Ó” já saia meio fraco no seu abatimento pela doença. Mas xingava o CTI do hospital, onde entrou pela penúltima vez de “sucursal do Inferno”. Na última, quando o vi pela última vez, respirava por aparelhos. Eu sabia que ele não mais saia de lá. Peguei o carro e sai desnorteado querendo apagar aquela imagem. Fui até o Mirante do Leblon num dia feio, nublado, e fiquei olhando as ondas quebrarem na encosta como se me devolvessem melhores imagens do meu amigo. E chorava um caro gole de cerveja, como se bebêssemos juntos, tal qual fizemos muitas vezes a falar mal do mundo e desacreditando da natureza humana (o melhor esporte de Henrique Lira). Zé era ateu como eu sou. E martelava na tese de que a humanidade não deu certo, me convencendo com exemplos das últimas trapalhadas políticas que acabavam com biografias impecáveis, enquanto longe do poder corruptor. A qualquer um, garantia.

Não acreditava em partidos, com a mesma convicção com que negava deus. Descobria atrás da bondade o interesse pessoal. Desmascarava os aparentes bem intencionados, sempre! Foi um geólogo da Petrobras, depois formado em Direito. Como geólogo dissecava a natureza humana com fina ironia, e simples como explicava as camadas geológicas da crosta terrestre. Depois, formado em Direito seu sarcasmo aumentou: defendia que a lei era uma invenção para conter os desvios (inevitáveis, segundo Lira) do humano. Hobbes era seu filósofo. Leviatã, sua bíblia.

Viveu intensamente para morrer tão novo. Como exagerava nas convicções, exagerava na bebida, nas mulheres, nos relacionamentos. Mas o Negão, acho que por uma sinceridade também exagerada, era gostado pelos amigos, os colegas de trabalho, pelas pessoas que conheceu mesmo que rapidamente. Amigos, muitos. Inimigos, que eu saiba, nenhum.

E eu senti uma saudade dele, de outro Zé, do Valdir, do Ricardinho, do Valney, do Julinho, do Edivan, do meu pai, minha mãe. Acho que estou com saudades de mim... Desculpem. Chove. E a chuva chora comigo.
______________________________
Foto do acervo de Fernando Gustav. Henrique Lira Rabelo argumentando com fina ironia. Assim quero lembrar o meu amigo Zé.

klöZ (1000TON)


O klöZ está triste com a morte do Zé (1000TON)

1 versinho


VIRADO PRA LUA

Tem dia que eu fico assim
Todo virado pra lua
Alguém olha pra mim
Quando me vê na rua
Pensa que sou um ator
Que vive á toa e atua
E trama um final feliz


Quem olha assim
Não diz que sou astro do rock
Pensa que sou sertanejo
Pelo meu brejeiro enfoque
Do meu capiau verniz


Só que tem dia
Que tô virado pra lua
Meto bronca, sento a pua
Só não me meto à juiz
Sinto gastura, agonia
Quando a verdade vem crua
De dentro da fala tua
Que teu olhar nega e diz


Também tem dia
Que não me meto comigo
Tem dia que não consigo
Caber direito em mim


(Climério Ferreira)

_____________________________________________________________

foto: Paulo Tabatinga

Camélia Suburbana

Lázaro José de Paula

UMA DAMA  DAS CAMELIAS
SUBURBANA E  ESGUIA
NO  ESPELHO DO SEU QUARTO
ESCREVEU  UM  DIA
COM  SEU BATON PREDILETO
PASSADA  A  SUA AGONIA

NAO VOU  MAIS CHORAR
NÃO  VOU MAIS  SANGRAR
PORQUE O  TEMPO DE  CHORAR PASSOU
PORQUE O  TEMPO  DE  SANGRAR PASSOU

LIMPA  DO  CANTO DO LABIO A  SEIVA
O  ODOR  E O GOSTO DA SALIVA FRIA
DO  PAVILHÃO  DOS  OLHOS  AS  FARTAS  OLHEIRAS
E ABRE  JANELAS QUE DESCONHECIA

NÃO VAI  MAIS   CHORAR
NÃO  VAIS MAIS  SANGRAR

Generosidade


GENEROSIDADE

Ana Cecília Salis

As minhas mãos me denunciam num tempo
Que me assusta 
por não poder competir com qualquer juventude...

A minha alma me denuncia num mesmo tempo
Que me assusta
Por teimar em não envelhecer com o meu corpo

É a minha vida quem me ensina
o susto...
da espera
por um amor generoso
que me perdoe a alma...

_______________________________________________
foto: Cinéas Santos

Uma Fração do Todo

Luiz Horácio


Não admiro tampouco invejo aqueles que alardeiam não ter medo da morte.  Não temer a morte é não ter medo de morrer. Essas pessoas me assustam. Temo a morte e as maneiras de morrer. Li e reli Sêneca: “Deve-se aprender a viver por toda a vida e, por mais que tu, talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer”.  Não funcionou.

Uma fração do todo é um livro descontraído e pretensioso. Descontraído por se tratar de uma comédia, pretensioso por pretender abarcar mais que uma fração do todo, vai de uma análise profunda da solidão ao exame pormenorizado da  vida em sociedade. Consegue ser trágico, irônico e engraçado. Ao mesmo tempo. Na dose exata às pretensões do mercado. Tudo bem visível, tudo na superfície. Sim, é ficção, eu sei. Mas de ficção desse teor o inferno está cheio.

Uma fração do todo é de ruborizar o livro de Murakami, aquele sobre corrida. Steve Toltz mostra que não brinca em serviço, está bem preparado fisicamente. Recomenda-se o mesmo treinamento aos leitores pois estarão a cada página frente a um novo acontecimento. Tal aspecto aliado a características dos personagens, sobretudo Terry, faz de Uma fração do todo um tardio representante da novela picaresca. Imprevisibilidade é outra característica da obra de Toltz, reviravoltas e mortes que mudam o rumo da história. Sim, o leitor jamais sentirá o tédio tentando lhe seduzir, ao mesmo tempo se perguntará: mas pra que tudo isso?

Optei pela morte, pelo medo da morte. Mas precisava tanto para tão pouco?

Não interprete, freudiano leitor, por favor não interprete.Isso não significa que este aprendiz ame livros sonolentos onde pouco acontece, como Becket e o tédio mor de Clarice Lispecto.Nada disso. Toltz escreveu um livro para os irmãos Cohen, fique atento cinéfilo leitor. O trágico e o engraçado referido anteriormente, lembra? Lá no começo.

Irmãos Cohen, irmãos Dean. Martin e Terry Dean. Opostos, extremamente opostos.Martin, filósofo pessimista, Terry, líder da “cooperativa democrática do crime. Martin, o taciturno, a ausência de movimento. Terry,o bandido carismático, a inquietação.

A história é narrada por Jasper Dean, filho de Martin. Jasper é o resultado das influências familiares extremamente opostas. Tudo leva a crer, no entanto, que se as influências viessem apenas de seu pai, o resultado não seria muito animador. Ele me tirou da escola com a intenção de me educar ele próprio e, em vez de me deixar pintar com os dedos, lia para mim as cartas que Van Gogh escreveu para o irmão Theo pouco antes de cortar a própria orelha”.

Jasper é praticamente a cobaia de Martin. Cobaia de filósofo existencialista, convenhamos... O garoto sobrevive, assim como outras cobaias sobreviventes, ostentando sequelas.

A orelha de Van Gogh é uma das  traduções da obra de Toltz, trata-se de uma fração. Ao final da leitura restará ao leitor a possibilidade de optar por uma fração, escolhi o medo da morte. Você tem várias outras: análise engraçadinha sobre a Australia e os australianos, tratado sobre relações familiares,retorno ao ideal quixotesco,pitadas de Policarpo Quaresma, e pasme, reflexões acerca da solitária atividade intelectual. Repleto de novidades, não?

A outra tradução: o inconformismo de Martin. Submeter uma criança ao cansaço dos professores é exigir extrema submissão. Com a palavra Jasper: “...depois de oito meses no jardim de infância, decidiu me tirar de lá, porque o sistema educacional era ‘embrutecedor, emburrecedor, arcaico e materialista’. Eu não sei como alguém pode chamar pintura a dedo de arcaico e materialista”.

Depende, Jasper, depende. Mais uma: o livro traz inúmeros questionamentos, humor, interpretações de inestimável relevância, que beira a auto-ajuda.

Percebeu, exigente leitor, um livro de mil e uma utilidades. Bom proveito.


domingo, 6 de novembro de 2011

VIAGEM AO PASSADO IV

Edmar Oliveira

A única diferença era o chão calçado. Não era mais aquela rua de areia branca onde andaram meus pés descalços. A cidade era a mesma, só que como eu crescera ela parecia ter encolhido. Mas as casas, as praças, o cemitério, a igrejinha, tudo como guardara dentro de mim, só que de tamanho mais diminuto que nas minhas lembranças. A realidade vista era bem menor que as memórias em mim guardadas. Mas as miniaturas correspondiam às imagens grandes armazenadas. Elas se derramavam na realidade naquele passeio de fim de tarde. Comentava com Geraldo: aquela cidade ficara conservada no tempo. As calçadas, as pessoas sentadas na calçada, esperando o dia acabar como sempre tinha sido. Geraldo, parceiro dessa aventura em busca de nós mesmos, caminhava ao meu lado. Dois velhos se faziam meninos em calças curtas. Falávamos das baladeiras, da procura das guabirabas, de mangas e dos seus tipos e das mangueiras e suas sombras.

De repente algo nos incomodou. A praça na frente do cemitério não tinha mais o campo de futebol. Tinha um ginásio coberto, que acobertava nossas lembranças e enfeiava o cenário. Como é que eu podia lembrar do Lauro Barbosa a cavalo, dando tiros pro ar, atravessando o campo de futebol galopando garbo, com aquele trambolho que impedia a reminiscência de um menino admirando o facínora? Fizemos de conta que aquele ginásio não existia. Ele não cabia em nosso passado. Continuamos andando.

No final da rua que margeava o rio, a última casa repedia a casa do meu avô no passado, mas com algumas diferenças. As paredes de taipa estavam rebocadas e pintadas de amarelo; o telhado de palha estava com telhas de cerâmica. Mas a imagem, mesmo um pouco modificada, era uma peça que se encaixava no quebra-cabeça das minhas lembranças. Foi de forma incontida que solicitei a dona da casa, que aguava as flores de um jardim no quintal, que me deixasse entrar. Geraldo foi comigo.

Tudo naquela casa me era familiar, os quartos não tinham mais as marcas da fumaça da lamparina a querosene, mas o espaço, agora na luz elétrica, era o mesmo. O forno da cozinha estava de barro novo, mas repetia as minhas lembranças. O jardim tinha o mesmo perfume e as flores de minha avó Maria, a mãe Velha, como todos os netos chamavam.

Escurecia, mas mesmo assim atravessei o quintal onde o Pedro Solano matava bodes nas madrugadas escuras. Escutei o berro do bode e via o meu avô espichando o couro do bicho com talos de cocos verdes, que envergavam na secagem da pele do bode. E via o bode pendurado numa forquilha, sendo esquartejado pelo Solano, que fazia tudo isso com uma destreza admirável e sorria com sua tosse efizematosa, tendo uma ponta de cigarro “pau-ronca” no canto da boca. As imagens eram fortes, mas só sentia a dor da saudade. O Pedro Solano me dava um café com borra, adoçado no bule, feito numa trempe ao lado do bode dependurado, já nu, sem o couro. Depois cortava em partes para levar ao seu açougue no mercado. E eu, de cócoras, assistia aquele espetáculo fascinado, desejando ter coragem para matar um bode quando ficasse homem. Naquele momento, já velho, só sabia chorar, embriagado naquelas memórias...

Disfarcei as lágrimas contando ao Geraldo como meu velho avô, além de ter uma roça no outro lado do rio, do lado de cá, no seu quintal, fazia vazantes nas cheias do rio, plantando melancias, melões de cheiros inconfundíveis, feijão e milho.

Na beira do rio, num escurecer que se faz devagarzinho, olhamos uma canoa adormecida, fazendo água, esperando que o dono a desamarrasse para que ela ganhasse vida, singrando as águas a procura dos piaus que se escondem por debaixo das canaranas na beiro do rio que desliza preguiçosamente em silêncio... 
   

_____________________________
Ainda faltam dois capítulos. Foto do forno da minha avó e canoa adormecida. Para ler os anteriores coloque Viagem ao Passado na pesquisa do blog.     

correspondencia em +1 versinho

Trocas de e-mails com Climério Ferreira:

A SEGUNDA VIAGEM DO EDMAR  


Não se atravessa o Cordoz
Impunemente
Onde havia areia branca é o calçamento
Recente
Só o azul do céu permanece igual
Em Palmeirais
As cores das casas são as mesmas
Das lembranças
Bem na beirinha do rio
O Tibungo descansa
Atrás da antiga Usina
Bem depois dos mangueirais
Na pensão de dona Zenóbia
Que é a dona do lugar
Come-se carne de sol
Ou uma recém-morta galinha
Logo depois das Queimadas
Fica Barreirinha
Na beira do rio
Do lado de cá
Rola umas relembranças
Esquecidas de acontecer
E entremeando as lembranças
As águas do Parnaíba
Soluçando ao descer  
(Climério Ferreira)


 
Agora fui eu quem ficou emocionado
Meu poeta arretado
Que faz do verso um criado
Seu como se fosse amado
Sentimento encarnado... 

(Edmar)

é que me deu uma vontade incontida de desvelar a poética da tua prosa, meu irmão.
abs

climério

Meu Rio


Geraldo Borges

Eu estou  fazendo  um rio só para mim
Suas águas  escorrem em minhas mãos
E o meu rio nunca mais terá um fim
A não ser correr para o mar na solidão.

Estou fazendo o meu rio desde a nascente
Ele desce a serra entre pedras pinoteando
E está crescendo e tem feições de gente
Exprimido entre as margens e galopando.

Eu estou fazendo o meu rio e ele me faz
Para em  suas  coroas  eu tomar banho
E de menino meu rio  tornou-se um rapaz.

E sei que nunca  terminarei de fazê-lo
Esse meu rio de nuvens que  amanho
Escorre de minhas mãos como um novelo.

klöZ (1000TON)

Insólito

Recebido de Cinéas Santos por e-mail:
Meu compadre: veja isso. Fiz  na cidade de Francinópolis, no sertão do Piauí. Surrealismo em estado puro. cs

haikai solitário


Na velha praça esquecida,
refulge um ipê solitário,
única centelha de vida...

(Cinéas Santos)

Cantiga para esconjurar o escuro



Paulo José Cunha
                 
                                 Para Thiago de Mello


Quando não restar mais nada
Quando o amor for embora
E quando alguém perguntar
E então, José: e agora?

Quando a esperança acabar
Quando o escuro voltar
(Que o escuro não descansa
Sempre pode retornar)

De algum ponto da floresta
Barreirinha ou Jamundá
Ou de algum fundo de rio
Amazonas, Paranoá,
Ressurgirá a loucura
A doidice abençoada
De algum poeta Thiago
Que sairá mundo afora
Ensinando a toda gente
Que quanto mais faz escuro
Mais é preciso cantar

Por isso chegou a hora
De ir pra rua gritar
Que a poesia é da rua
E que já passa da hora
De ir pra todo lugar
Dizer que a vida é agora
E que o escuro é o sinal
De que a aurora vem vindo
E que a manhã vai chegar.

______________________________
ilustração: "Resadeira" de Paulo Moura

Mulher Negra


Léopold Sédar Senghor

Mulher nua, mulher negra
Vestida de tua cor que é vida, de tua forma que é beleza!
Cresci à tua sombra; a doçura de tuas mãos acariciou os meus olhos.
E eis que, no auge do verão, em pleno Sul, eu te descubro,
Terra prometida, do cimo de alto desfiladeiro calcinado,
E tua beleza me atinge em pleno coração, como o golpe certeiro de uma águia.
Fêmea nua, fêmea escura.
Fruto sazonado de carne vigorosa, êxtase escuro de vinho negro, boca que faz lírica a minha boca


savana de horizontes puros,
savana que freme com as carícias ardentes do vento Leste.
Tam-tam escultural, tenso tambor que murmura sob os dedos do vencedor
Tua voz grave de contralto é o canto espiritual da Amada.
Fêmea nua, fêmea negra,
Lençol de óleo que nenhum sopro enruga, óleo calmo nos flancos do atleta, nos flancos dos príncipes do Mali.
Gazela de adornos celestes, as pérolas são estrelas sobre a noite da tua pele.
Delícia do espírito, as cintilações de ouro sobre tua pele que ondula
à sombra de tua cabeleira.
Dissipa-se minha angústia, ante o sol dos teus olhos.
Mulher nua, fêmea negra,
Eu te canto a beleza passageira para fixá-la eternamente,
antes que o zelo do destino te reduza a cinzas para alimentar as raízes da vida.


________________________
Paulo José mandou o texto. Netto de Deus do "Picinez" fez a caricatura do poeta

Diário de Luto

Luiz Horácio

O diário, segundo o define Philippe Lejeune, é uma escrita cotidiana, “uma série de vestígios datados” (2008, p. 259). Além de uma escrita “diária”, do registro de acontecimentos banais, trata-se também de uma exposição da intimidade para o próprio autor(a) que escreve, visto que, em princípio, não há endereçamento para o outro, como seria o caso das cartas. O diarista escreve para si mesmo, o eu é o interlocutor privilegiado. André Gide, ao apropriar-se da forma do diário( Diário dos moedeiros falsos) para escrever um romance ( Os moedeiros falsos), rompe com a convenção do gênero, revelando a sua identidade – sobretudo a de um sujeito autor – para um vasto público de leitores. Ou seja, o que é mais próprio do eu que escreve, o autor, que se define pela sua tarefa de escrever, é justamente o que se transforma em matéria de criação. O diário é uma espécie de texto em que a pessoa se observa ao longo do tempo, movida, quem sabe, pelo interesse de se autoconhecer, e pelo próprio gosto da escrita, onde esse ser que escreve acaba por se revelar a si mesmo.

Você, potencialmente mórbido leitor, marcaria qual alternativa para Roland Barthes com seu Diário de luto?Acredita que a imensa quantidade de aforismos revele a intenção do autor em se conhecer? Ainda tentando se conhecer naquela altura da vida? Ou quem sabe gosto pela escrita? Quem sabe... Vale lembrar o que Barthes diz em O ofício de escrever - vol. 1: escrever só é plenamente escrever quando há renúncia à metalinguagem; não se pode, portanto, dizer o Querer-Escrever senão na língua do Escrever.

Diário dos Moedeiros falsos é o diário do autor enquanto escrevia sua obra de maior repercussão, Os moedeiros falsos. Gide revela seu processo criativo, desde a criação dos personagens, do enredo, suas dúvidas, seus questionamentos acerca da trama e valiosas reflexões sobre o fazer literário. O leitor testemunha a relação de Gide com os personagens, relação que, por vezes, parece ultrapassar o âmbito da literatura.

Roland Barthes  escreve seu Diário de luto enquanto prepara seus cursos para o Collège de France, escreve A câmara clara, mas diferente de Gide  não permite  a participação do leitor. Que se conforme com o papel de espectador.Um espectador choroso. Uma carpideira no máximo.

Diário de luto é um livro de aforismos sobre a dor de um homem frente a morte de sua mãe.Ao leitor atento sobrarão pistas do tédio, do desespero, e do início da caminhada de Barthes em direção a sua morte. “A verdade do luto é muito simples: agora que a mam. está morta,sou empurrado para a morte ( dela, nada me separa, a não ser o tempo).

As anotações são quase diárias, 26 de outubro de 1977 a 15 de setembro de 1979.  Barthes morreu em março de 1980.Atropelado ao atravessar a rue des Écoles, em frente ao Collège de France.

Em seu livro, Roland Barthes. O  ofício de escrever., Éric Marty assinala: Costumam dizer que ele se deixou morrer.O ferimento não era tão grave; na verdade morreu de infecção hospitalar.

O Diário de luto de Barthes é, em última instância, o seu diário, futuro órfão.

O meu?

Eu não queria aquela expressão no rosto morto de minha mãe, ali ela mentia, aparentava paz, ela me enganou e eu não chorei. Contra outros silêncios seus eu lutei, mas contra aquele não havia nada a fazer...




Aurélio Melo e Orquestra Sinfõnica de Teresina