quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

O INCÔMODO DA LOUCURA

Edmar Oliveira

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Conto de pura ficção, provocado pela falsa realidade retratada nas páginas 14 e 15 de "O Globo", edição de nove de dezembro, sobre a situação da Saúde Mental no Brasil.
A reportagem, assinada por Soraya Aggege, insinua o retorno dos manicômios para o centro da Política Pública, como solução do problema.
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Vez por outra o navio dos loucos aportava num cais de uma cidade qualquer. O capitão apitava anunciando a atracação. Alguns passageiros desciam e circulavam timidamente pela cidade. Mas quando a nave partia, os passageiros embarcavam em silêncio, mesmo tendo gostado do passeio na cidade. Vez por outra o navio atracava por mais tempo. E, em alguns cais, nem todos embarcavam de volta com a partida do barco. Houve mesmo revoltas comandadas por marujos que se recusavam a embarcar de volta com seus passageiros. De algumas, as cidades lembram bem. Teve aquela comandada por uma senhora muito pequenina, mas valente, chamada de "Revolta da Rebelde", que marcou toda uma geração. A senhorinha saiu com seus passageiros do navio e se recusou a voltar a embarcar, quando foi anunciada a partida. Distribuiu telas, tintas e pincéis para seus loucos, fazendo do cais um ateliê a céu aberto. Eles não pintaram o mar, o céu, os barcos, o pôr do sol. Eles pintaram imagens do mundo interior que mostravam o caos e a angústia da viagem no porão do navio. Mais tarde, mandalas organizaram a calma encontrada no cais e longe do navio. E depois eles conseguiram imagens que se confundiam com a própria paisagem e com a cidade. Mas, um dia o navio voltou, como acontecia sempre. E muitos foram reembarcados para a viagem ao longo do rio da vida, que raramente aportava nas cidades surgidas na travessia. E quando aportava, mais pessoas entravam e poucas saltavam. É de se confessar que algumas escaparam sem permissão. A lei era feita para embarcar os loucos na nau dos insensatos. Algumas pessoas contam que da margem escutavam gritos de dor e tristeza, quando o navio singrava manso o largo rio da desesperança. Mas a maioria das pessoas das cidades não escutava vozes e nem via o navio ao longe, tão longe que desaparecia de suas preocupações. O navio seguia, as cidades existiam livres da loucura que, sempre que era percebida, embarcava na atracação do navio. Outras cidades colocavam seus loucos em canoas e os levavam até ao navio. Os gritos de dor e tristeza aumentavam de forma ensurdecedora. Alguns marujos escaparam do navio e foram até as cidades dizer das condições de vida insuportáveis ali dentro. Algumas pessoas da cidade foram solidárias ao que diziam os marujos. O navio estava velho, pesado e sem conseguir fazer a travessia. Era uma viagem que tinha começado, mas nunca tivera fim. A travessia era a própria viagem sem fim. Tentou-se mudar o curso do navio. Não foi possível. O velho navio estava encalhado, seus passageiros feitos prisioneiros, sem conseguir fazer a travessia anunciada. Talvez presos para sempre. E para alguns que morreram na viagem, foi apenas a travessia para a morte. E outros gritaram que o navio devia ser abandonado. Mas tinha a travessia. E ela devia ser cuidadosa. De todas as cidades partiram barcos solidários para tirar os passageiros do navio. Cuidadosamente a travessia foi feita destinando cada um ao seu porto. E cada louco pôde circular na sua cidade, mas sempre que era preciso voltava ao cais e embarcava na sua pequena embarcação para um passeio no rio da vida. Ninguém foi levado de volta ao navio que foi ficando abandonado.E o cais foi alcançado pela maioria dos passageiros do navio. E cada cais, em cada cidade, ficou sendo o lugar do encontro. Dos passageiros libertos e de quem seria, no passado, um passageiro. E a partir do cais as cidades foram habitadas por seus loucos. Acostumavam-se com a loucura como um acontecer comum aos habitantes das cidades. E os marujos aprenderam também a conduzir seus passageiros em terra firme. Uma travessia que não precisa ser feita por longo tempo no porão do navio, mas de onde se ficou perdido, por entre bancários, automóveis, ruas e avenidas, como na canção do poeta. E quem ficou conhecendo cada história, de cada uma destas pessoas, sabe a diferença que fez não embarcar naquele velho navio. Sim, eu estou tão cansado... É que a história de fazer o rio da vida sem a nau dos insensatos é muito antiga. Quando tudo parecia dizer que a travessia dispensava a nau dos loucos, um jornal da metrópole anuncia nova descoberta da ciência: embarquem-se os loucos num moderno transatlântico que a travessia se fará em alto mar com tecnologias modernas. E eu, que estou tão cansado, reconheço aquele velho navio que pretende recolher o incômodo da loucura...



11/12/2007

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