domingo, 21 de setembro de 2014

Memórias de um comedor de panelada

(Edmar Oliveira)

Outro dia, tendo ido almoçar num restaurante a peso (maldita invenção brasileira de vender restos) me enamorei por uma suculenta dobradinha. Restaurante a peso é para gente fina que come salada e filé de peixe que pesam pouco. Rabada, costela, dobradinha, cozido, galinhada no peso da mistura e de ossos faz a comida do nordestino ser muito cara. Essas iguarias só nos restaurantes a preço único, sem balança ou no velho e decente prato feito.

Mas voltando: a dobradinha carioca ou a tripa lombreira portuguesa sempre me remetem ao sabor de uma panelada do meu Piauí. Não no sabor total, mas o cheiro e sabor do bucho traz a lembrança, mesmo faltando as vísceras e o mocotó que caracterizam a nossa panelada. E como a dobradinha pensando numa panelada. Talvez pela lembrança ela faça às vezes de minha saborosa memória.

Hoje, em qualquer restaurante típico do Piauí já se serve a panelada sem o preconceito. Mas teve um tempo que ela não frequentava os restaurantes finos. Era comida de pobre no mercado. Lembro que meu pai me mandava comprar uma panelada no Clube Auto Esporte, sede do Fluminense do saudoso Belchior. Mas o time era tão ruim que a sede podia vender panelada. Não era coisa que se comesse na sede do River ou no Iate Clube. Na minha juventude fui freguês de carteirinha da Maria Tijubina e tenho saudades da iguaria do Mafuá. Até quando ela perdeu o barraco na beira da linha do trem, eu, já morando fora, quando estava na terra ia na casa da Maria Tabaco de Sola (sobrenome que não pronunciávamos na sua presença ou de suas filhas), que ficava na Palmeirinha.

Tenho uma história curiosa de quando a panelada começou a frequentar os restaurantes. Estava em Teresina e com meu amigo Assaí fui receber no aeroporto outro filho ilustre que morava fora. Da mesma fome que eu, Chicão – recém-chegado – tava na vontade da panelada. Como o velho Assaí nunca enjeita a iguaria, contou que ali perto do Aeroporto, no antigo e já fechado restaurante Coqueiro Verde, tinham começado a servir o prato rejeitado pelas elites. Corremos pra lá nas horas quentes da tarde e o suor já empapava nossas camisas. Tinha um salão com ar-condicionado e outro salão do lado de fora, porque os fregueses tradicionais gostam do calor da terra e outros ficavam com medo de pegar um “difrúcio” pela mudança brusca de temperatura. Desta forma, o salão do lado de fora era simples e o de ar-condicionado refinado para receber os mais ricos. Emburacamos no salão com ar, que o calor tava de matar! Pedimos o cardápio e além do filé com fritas, tinha galinha caipira, capote, paçoca, mais nada de panelada. Ficamos decepcionados e o Assaí jurava que já tinha comido panelada naquele restaurante. Chamamos o garçom para tirar a nossa dúvida e o “da bandeja” nos esclareceu com a maior naturalidade:


– tem, mas só lá fora!    




Salgado Maranhão



LACRE


O mundo em seu lacre
de vidro
agenda-se
para nutrir abismos: seu
pacote de raios; seu
tempo em demasia.



(E os anjos jantando crack,
e os porcos na sacristia.)

Por isso edito essa cruz de sabres
nesse cardume de ontens,
nesse arremedo de eternidade.

Juro que vi
o século enfermiço decapitado
na cara da TV (a morte globalizando-se
em Pedrinhas ou em Kandarhar);

juro que vi
a morte narcísica
e seu personal trainer: não matam
para infamar os céus, matam pelo prazer de doer, matam
para querer ser Deus.

SALGADO MARANHÃO
______________________________
desenho: Amaral

A CIDADE MARAVILHOSA E AS CIDADES MAFIOSAS

(Edmar Oliveira)
1000TON

Pra zona sul do Rio de Janeiro ser a cidade maravilhosa, uma cortina é colocada nas bocas dos túneis para esconder a cidade real. A cidade real para além-túnel tem o abandono das comunidades carentes à própria sorte, onde o Estado não põe os pés e lava as mãos. E são várias cidades não maravilhosas nas mãos do tráfico ou das milícias. As UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) tão elogiadas nas comunidades do entorno da cidade maravilhosa não funciona como aqui nas cidades mafiosas. A aparente pacificação de lá longe das vistas dos turistas não acontece como em Dona Marta, no Chapéu Mangueira, no Cantagalo. Pra lá de acolá a paz é aparente, as comunidades são vigiadas pelas UPPs para que o tráfico, sob controle, não escape do seu território. E pior sorte tem as comunidades dominadas por milicianos e aí eles crescem na zona oeste e subúrbio como uma chaga que já controla a vida de quase trezentos mil habitantes nas contas de “O Globo”.

A milícia nasceu no Rio com a cumplicidade do poder público. Um antigo prefeito dizia que elas eram um mal necessário para livrar os moradores do tráfico, onde o braço do estado não alcançava. Virou um bico para policiais que servem ao estado e cresceu tanto que mantem um braço político no poder judiciário e entranhado na máquina pública. Apesar de serem presos Gerominhos, Natalinos e outros deputados e vereadores, eles ainda se fazem representar nos brasões e bombeiros que dominam comunidade que os tem como donos. Conjuntos habitacionais do festejado projeto federal “Minha Casa, Minha Vida” já são dominados por milicianos que elegem os síndicos, verdadeiros xerifes que impõe regras e negócios ilícitos (tv a cabo, distribuição de gás, transporte alternativo) que sustentam um comércio lucrativo. A quebra desses contratos ilegais geralmente é punida com execução do morador rebelde, na luz do dia para que sirva de exemplo. Certos de que o estado não chega, a milícia promove a barbárie.

Nessa quinzena assistiu-se a um acontecimento inacreditável para uma sociedade civilizada: uma jovem desapareceu misteriosamente após ser entregue a uma quadrilha que faz abortos ilegais. Numa comunidade dominada por milicianos, onde o responsável pelo funcionamento do serviço ilegal é também um miliciano. Quer dizer, aborto também já passou a ser um serviço executado pelos milicianos. O sumiço de uma jovem, sem deixar pistas, na cidade do Rio de Janeiro é um episódio típico de um território dominado pela barbárie. Em plena campanha eleitoral onde ainda se discute a legalidade ou ilegalidade deste procedimento. Pois bem, tornado ilegal pela hipocrisia do estado e pressão de grupos religiosos, o aborto – que poderia ser um ato médico do estado – passou a ser um negócio dos milicianos, com desaparecimento misterioso da vítima, se algo sai do controle da tecnologia primata oferecida por esses bandidos. Espero que depois de escritas estas linhas o corpo da jovem seja encontrado, mas é inconcebível para uma cidade civilizada o seu desaparecimento por tanto tempo.

Enquanto por aqui a gente se diverte na cidade maravilhosa, na cidade mafiosa a realidade é outra.

  

Resenha de GERALDO BORGES

1968 - UMA GERAÇÃO CONTRA A DITADURA

1968 Uma geração contra a ditadura de Antonio José Medeiros é  um livro que chegou na hora certa. Trata se de um depoimento, não em forma jornalística, tradicional, com perguntas e respostas, mas, sim, de uma autobiografia. O autor começa falando de seu nascimento. Foi tirado a forceps.

Logo no segundo capitulo fala de sua relação com a igreja, da sua experiência como seminarista. “ Tínhamos  no Seminário  algumas academias de caráter cultural – literário. Em 1963 eu fui eleito presidente da Academia imaculada Conceição. A nova diretoria liderou uma campanha para transformar a Academia num grêmio estudantil, como uma maneira dos estudantes do  Seminário participarem do movimento estudantil em suas atividades  culturais , sociais e também políticas.”

No capitulo três já como ex  - seminarista, e respeitado na comunidade eclesiástica, o autor fala sobre a Fafi, ambiente fecundo e território livre.
”A Fafi era um ambiente intelectualmente fecundo e politicamente democrático. È incrível como uma faculdade criada  e mantida em condições financeiras  precárias oferecesse  um padrão razoável de ensino.” E  nesse tempo que começa a sua participação política no movimento estudantil contra a Ditadura. A sua participação no congresso da Une, a sua primeira prisão.  Fala no jornal Dominical o  porta voz da Diocese, e para surpresa minha, ressuscita a figura de seu Joaquim trazendo para as paginas de seu livro um tipo humano muito querido no ambiente da faculdade e do jornal Dominical.Falou sobre a palestra de  Dom Antonio Fragoso, bispo progressista de Crateús. Lembro-me muito bem desta palestra, eu  estive presente; foi no auditório do colégio Diocesano.Era um bispo corajoso.

Continuando a leitura do livro de Antonio José Medeiros chego ao  quarto capitulo – As prisões. Para falar a verdade eu não conhecia o Antonio José. Começamos a nos conhecer na prisão, e nos tornamos amigos. Ele fala sucintamente de cada colega da prisão. Talvez tenha se  esquecido  de registrar muitos episódios, No entanto, traçou o perfil psicológico, de cada um de seus companheiros de cela.

”Benoni era o mais “ escolado .” Sabia dosar certa compenetração de revolucionário com o bom humor. Às vezes me gozava pelo que ele chamava de “ ingênua seriedade cristã.” Tínhamos boas discussões. Era o que mais sentia a falta do mundo exterior, por isso vivia criando oportunidade para contatar com alguém “ de fora da cela.” Era o mais entusiasmado com as nossas pelada de futebol de salão. Infelizmente, em nove meses, não ganhou a musculatura de atleta com que ele sonhava.”.
Já quanto ao Samuel. “ Era o mais preocupado com o futuro: estudos, trabalhos e família. Tinha seus rompantes de violência revolucionária, imaginando grandes ações contra a ditadura. Ficava horas de bruços na cama, tamborilando os dedos no ar, talvez acompanhando o ritmo de seus pensamentos ou deixando escapar as energias acumuladas.”

Por último, “ O Geraldo Borges , o sempre querido Geraldin, era um “filosofo oriental.” Ficava em posição iogue  por longo tempo e mastigava os alimentos com tanta calma que me deixava impaciente. Como já disse era um grande conhecedor da literatura  brasileira e universal. Foi meu guru literário.”

Pena que o Antonio José não explorou mais  o capitulo: - As prisões. Dedicou-lhe apenas cinco paginas. Lembro que fomos julgados em junho mês da copa do mundo. E assistimos a vitoria do Brasil, campeão do mundo, de dentro de uma cela, em uma TV exposta no corredor do quartel  próximo a Auditoria Militar E lembro também a famosa frase que o nosso advogado Pádua Barroso proferiu na abertura de nosso julgamento. Estes jovens pensam que o céu é perto e o mar e raso.
No capitulo cinco Antonio José fala no movimento  social e político da igreja na organização dos sindicatos rurais antes de 1964, oferecendo ao leitor uma recuo cronológico em seu depoimento.
No capitulo seis  insere uma entrevista do Benoni Alencar para o Jornal Diário do Povo. E um pequeno painel de como se desenvolveu a luta estudantil no Piauí no tempo da ditadura.
No capitulo sete Antonio José vai para o Rio de Janeiro, antes passou pela Bahia. “ O Rio de Janeiro, além de uma rica experiência intelectual e profissional, foi uma experiência social e cultural muito estimulante e que eu vivi com muita intensidade.” Mas Antonio José não para no Rio.
No próximo capitulo ele já está  com o pé da estrada  rumo ao Canadá. Conhece praticamente todo o continente americano. Encontrou o meu amigo Raimundo Santos, exilado político, na Costa Rica, dando aula. Depois dessa grande experiência que se tira das viagens Antonio José esta de volta a Teresina.

Aí começa o capitulo nove. A Volta  Trabalho, “Bar, Café, Filosofia.” Voltou para ser profeta em sua terra: Montou a livraria Corisco, com Cineas Santos e outros sócios.Depois rompeu com eles e montou a sua própria livraria;- A Punaré, que também não durou muito. Vender livros no Piauí  não é fácil. O capítulo e curto, mas irônico, e termina com a poesia do saudoso poeta e latinista Claudio Ferreira Em tempo. Antonio José deixou  de falar que foi um dos fundadores do jornal Chapada do Corisco. Um jornal nanico.

O livro constitui se  ao todo de   quinze capítulos num leque bom de  ventilar a memória. Alguns personagens do livro tiveram capítulos especiais. Capitulo doze. Dom Avelar: A difícil busca da virtude. Ribamar Lopes  Um militante decente. Capitulo treze, Mas, em resumo, o livro do Antonio José  fala  da ditadura no Piauí: repressão e resistência, E um recado para as novas gerações.

(Geraldo Borges)

Climério



PEÇO PAZ


Ando tão cansado dos dias
Que em breve anoitecerei
Deixarei que o corpo adormeça
Até que os ossos sonhem
Com tardes de um sol morno



Quero suavidade nas horas
Como se fossem riachos no tempo
Cheios de peixes ornamentais
Ariscos e coloridos

Quero manhãs sem fala
Mudas e claras
Com sua luz silenciosa e branca
Como são os santos momentos
De pura compreensão

Nada de dias ferozes 
Aflitos e gritados
Dessa desesperada existência
Quero a paz da vida calma

(Climério Ferreira)
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desenho: Gabriel Archanjo

Notícias da corte

(Edmar Oliveira)

Assaltaram o Cardeal do Rio e ele não tem como se queixar pro Bispo, que lhe é subordinado. Situação “nonsense”: Dom Orani saía da residência, no Sumaré (de Santa Teresa no rumo do Cristo, portanto uma zona turística e que deveria ser melhor cuidada pela polícia) com um padre, o fotografo e o motorista. Abordados, imagino a cena como noticiada nas folhas: os bandidos levam o anel cardinalício, o crucifixo, uma batina e a valiosa máquina e lentes do fotógrafo oficial. Diante de tantos símbolos ritualísticos, só faltaram exigir a bula de nomeação e o barrete vermelho do representante do Papa no Estado, os meliantes “suspeitaram” que a vítima era um padre e pediram perdão. O cardeal os perdoou, mas os assaltantes não devolveram o produto do crime e foram embora. Vale jogar uma praga cardinalística ou desperdoar os insensíveis?

Na mesma cidade, a maravilha da natureza corrompida pelos homens, o serviço secreto da Segurança Pública desbaratou uma quadrilha de oficiais graduados da Polícia Militar, inclusive o terceiro homem na hierarquia da instituição. Investigações comprovaram uma verdadeira organização criminosa em que eram exigidas propinas para que os olhos da lei não enxergassem delitos: no comércio, no transporte ilegal, nas infrações urbanas. Destaque-se que os crimes que os homens da lei protegiam eram justamente os que deveriam combater. Isto é, a nossa polícia promove o crime quando foi criada para combatê-lo. Precisamos dela?

“Eu tenho medo de polícia, de bandido, de cachorro e de dentista”. Por que cachorro? -“Porque cachorro não distingue o inimigo como se fosse polícia”. Por que dentista? - “ Porque dentista bandideira minha boca como se fosse polícia”. Nunca Sérgio Sampaio, autor desta pérola, esteve tão atual!




Péricles por Gervásio


PÉRICLES de Andrade Maranhão, o criador d' O Amigo da Onça

KAFKA POR DELEUZE E GUATTARI

(Luíz Horácio)

Maior e menor são dois conceitos que aparecem na década de setenta no texto deleuziano e logo invadem as análises, sejam elas estéticas, linguistocas, políticas, etc.... Esses conceitos passaram a   acompanham outras duplas conceituais, estático/ dinâmico, dominante/ dominado, senhor/escravo. Mas é com os conceitos  maior e menor que Deleuze pretende explicar a maneira como as normas sociais , culturais e políticas surgem, se estabelecem ou se transformam.
Literatura menor, conceito utilizado por Deleuze e Guattari, era frequentemente empregado por Kafka que costumava definir sua obra como literatura “menor”.
Deleuze e Guattari examinam o que vem a ser “menor”. Uma literatura menor não é aquela oriunda de uma língua menor, mas aquela que uma minoria, praticante de uma língua maior, é capaz de produzir.
É justamente no terceiro capítulo, O que é uma literatura menor, que o conceito começa  a ser examinado. É apresentado ao leitor os conceitos de desterriotorialização e devir, ferramentas corriqueiras nas mãos de Deleuze e Guattari.
Vários aspectos acompanham a dita “literatura menor”, entre eles o político representado por aqueles que vivem a praticar uma língua que não é sua língua materna, imigrados devido aos mais diversos motivos, servem como exemplo.
Kafka- Por uma literatura menor exige paciência, dedicação e relativo conhecimento de obras de Deleuze e Guattari, e do próprio Kafka. A leitura isolado do livro em questão pode resultar incompleta. Repare, estudioso leitor. Kafka- Por uma literatura menor, aborda três níveis teóricos. Anteriormente estudados na obra Mil platôs.

1-sóciolinguistico, aqui se encontra o material linguistico do qual Kafka dispunha na Praga do início do sec. XX.
2-estilístico- onde percebemos o resultado do trabalho de Kafka com aquele material.
3-político, reune os dois níveis anteriores para avaliar a forma como o processo kafkiano produz novos efeitos semióticos e permite nova perspectiva acerca do campo social.
Mas fiquemos com a situação linguística, por questão de tempo e espaço. Situações de bilinguismo ou de multilinguismo. Deleuze, particularmente, sempre demonstrou interesse por escritores bilingues: Samuel Beckett, irlandês , escrevia em francês; Franz Kafka, judeu praguense, escreveu em alemão.
A essa altura o leitor é praticamente convencido  a ver o bilinguismo como um pré-requisito para uma literatura menor. No entanto, Deleuze argumenta que o bilinguismo "nos coloca no caminho" de um conceito de "literatura menor", mas, enfatiza; somente no caminho. Esta função do bilinguismo e sua restrição imediata deve ser  entendida como uma função da problematização, deve ser avaliada em um nível prático e num nível teórico.
Vejamos o nível prático. A peculiaridade da situação de Kafka frente as condições sociolinguisticas de Praga no início do séc. XX. A coexistência de uma parte que utilizava a língua alemã, idioma oficial, dos negócios, das universidades; a língua vernacular, o tcheco, maioria da população; e o yiddish, usado por parte da população judia.
 Deleuze et Guattari apresentam Franz Kafka como um  modelo dessa literatura dita menor. No entanto, embora farta  documentação rumo a esse objetivo, desprezam certas peculiaridades que à época rondavam Praga e obviamente Kafka, entre elas as características do gueto onde viviam os  judeus de Praga, acrescente a precariedade do alemão falado por tal comunidade.
Kafka - Por uma Literatura Menor é uma obra de referência para quem deseja estudar a obra de Franz Kafka.

TRECHO

A Carta ao pai, sobre a qual se apoiam as tristes interpretações psicanalíticas, é um retrato, uma foto, imiscuída em uma máquina de uma espécie totalmente outra. O pai de cabeça curvada...: não somente porque ele próprio é culpado, mas porque torna o filho culpado, e não cessa de julgá-lo. Tudo é culpa do pai: se tenho distúrbios de sexualidade, se não consigo me casar, se escrevo, se não posso escrever, se abaixo a cabeça nesse mundo, se tive que construir um outro mundo infinitamente desértico. Ela é, no entanto, muito tardia, essa carta. Kafka sabe perfeitamente que nada disso tudo é verdade: sua inaptidão para o casamento, sua escrita, a atração de seu mundo desértico intenso têm motivações perfeitamente positivas do ponto de vista da libido, e não são reações derivadas de uma conexão com o pai. Ele o dirá mil vezes, e Max Brod evocará a fraqueza de uma interpretação edipiana dos conflitos, mesmo infantis. Contudo, o interesse da carta está em um certo deslizamento: Kafka passa de um Édipo clássico tipo neurótico, em que o pai bem-amado é odiado, acusado, declarado culpado, a um Édipo bem mais perverso, que se reverte na hipótese de uma inocência do pai, de uma “aflição” comum ao pai e ao filho, mas para dar lugar a uma acusação em enésimo grau, a uma reprovação tanto mais forte quanto se torna inassinalável e ilimitada (como a “moratória” do Processo) através de uma série de operações paranóicas. Kafka o sente tão bem que dá a palavra ao pai na imaginação, e lhe faz dizer: você quer de-monstrar “primeiramente que você é inocente, em segundo lugar, que sou culpado, e em terceiro lugar, que, por pura generosidade você está disposto não somente a me perdoar, mas, ainda, o que é ao mesmo tempo mais e menos, a provar e a crer você mesmo, ao encontro da verdade de outro lugar, que sou igualmente inocente”. Esse deslizamento perverso, que extrai da inocência suposta do pai uma acusação ainda pior, tem, evidentemente, uma meta, um efeito e um procedimento.

AUTORES

Gilles Deleuze ( 1925 - 1995) foi um dos mais influentes filósofos franceses do século XX. Depois de ensinar filosofia na Sorbonne e na Universidade de Lyon, foram os cursos de Vincennes que o tornaram célebre.Pensador da imanência, escreveu livros que marcaram época, como Lógica do sentido e Diferença e repetição; publicou diversos estudos sobre filósofos, como Hume, Espinosa, Nietzsche e Bergson, e sobre artistas, como Prouste Francis Bacon.



Félix Guattari ( 1930 - 1992) foi um filósofo, militante político e psicanalista francês, tendo sido aluno e paciente de Jacques Lacan, antes de romper com ele. Inventor da esquizoanálise, clinicou durante muitos anos na célebre clínica La Borde. Publicou notadamente Revolução molecular: pulsações políticas do desejo e O inconsciente maquínico: ensaios de esquizoanálise.


TRADUTORA


Cíntia Vieira da Silva é professora adjunta no Departamento de Filosofia e no Programa de Mestrado em Estética e Filosofia da Arte da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutora em Filosofia pela Unicamp, com estágio de pesquisa na École Normale Supérieure, em Lyon ( França ), é coeditora da revista Alegrar e autora de Corpo e pensamento: alianças conceituais entre Deleuze e Espinosa (2007)

poema vaidade


Paulo Tabatinga


domingo, 7 de setembro de 2014

quase um nada

(Edmar Oliveira)

            Me lembro hoje da minha aldeia naquele começo de mundo. Começo pra mim, que estava construindo minha passagem na vastidão do planeta. A pequena cidade se desmanchava nas margens do Parnaíba. Rio manso, vindo de um mundo escondido no interior do Goiás, e indo se derramar num oceano que eu não imaginava como era e nunca foi igual ao vir a ser. E aquele rio calmo que passava em meu quintal tinha o remanso, a pororoca, a arraia, a Iara, o Cabeça de Cuia e todos os perigos que suas águas carregavam no seu vagar preguiçoso. E, escapando destes perigos na travessia, a Tresidela se apresentava ainda mais medonha. Tresidela era a outra margem, do lado de lá, uma outra terra, onde habitavam os mouros das lendas que minha avó contava...
            Os mouros atravessaram o Atlântico nos medos dos portugueses e se refugiaram nas matas do Maranhão para ameaçarem a imaginação de um menino que delirava na beira do rio. Por certo que os mosquitos do fim do dia transportavam a malária que tornavam os mouros mais valentes e furiosos, com seus cavalos enfeitados de papel-de-seda e suas lanças de talo do coqueiro sangrando minhas primeiras memórias. Mas não podia esquecer a princesa, que tinha que ser salva e era a professora do colégio, ali tão frágil e sensível ao amor daquele menino que havia de vencer os infiéis...

            Por que me coloco nestas lembranças? É que o planeta amiudou. Os conflitos em toda parte me dão medo, mais que o rio e seus perigos. E também já não tenho certeza de quem são os infiéis ou se os mouros são os inimigos. Não tem mais o outro lado da Tresidela. É tudo meio confuso aqui, ali, acolá... Sinto saudade de quando as coisas eram mais firmes. Sinto saudade de quando meu mundo era menor, ali na beira do rio. Naquele pedaço pequeno as possibilidades eram infinitas. Aqui na imensidão do planeta globalizado a esperança é quase um nada...  

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crônica publicada originalmente em 20/03/2008

Climério

O APRENDIZADO DO MEDO

Eu só consigo escrever
Em voz baixa
Meus versos não gritam
Apenas dizem


Deixo aos doutos
Maiores saltos
Fico eu cá
Com meus cuidados


Atravessei um tempo de ciladas
De falsas curvas
De oásis de espinhos
Aprendi escrever assim
Para escapar
Das fronteiras nos mapas
De territórios móveis


Uma plantação de silêncio
Era adubada com palavras curtas

(Climério Ferreira)


Cidadão Peixoto por 1000TON


H Dobal

AMOR
.
Na calma da tarde
Vem um pensamento.
Partir para sempre.
Só. No adeus do vento.
.
Vão as velas côncavas
Sobre o mar aberto
Vão levando o amor
Ao destino certo;
.
Turva calmaria
Afunda o verão.
Naufragado amor.
.
O amor é somente
Umas dessas cousas
Que vêm e que vão.


(H Dobal)

A MORTE NÃO É BRINQUEDO

(Geraldo Borges)

       Minha mulher me deixou, e levou com ela o nosso filho, o meu filho. Ele tem dezesseis anos. É um adolescente, muito influenciável. Pelo que eu estou vendo ela  quer afastar o menino da minha companhia. Já arranjou até um amante. Os três estão passeando. Só vão chegar daqui a uns quinze dias. Antes que eles cheguem vou ter que bolar um plano para ter o meu filho de volta, do contrario eles vão fazer  do meu filho um monstro.
          Hoje, aqui em casa, dei uma entrada no antigo quarto do meu filho e fiquei olhando os seus brinquedos abandonados, entre eles os seus livros infantis. De repente abro um deles, ilustrado. Nisso me deparo com a história de um menino que caía na água  e ficava gritando que estava morrendo afogado por pura brincadeira,até ninguém acreditar mais nele.
         Antes de terminar a história entendi tudo. E tive um estalo. Estava ali a chave do meu plano. Um simples conto para crianças me  abriria as portas para um crime perfeito. Agora era começar a agir. Enfrentar o mundo do crime. Enquanto eles não chegassem da viagem eu executaria a primeira parte do plano.
        No outro dia li no jornal a manchete de um crime. Tinham assassinado uma mulher. A primeira coisa que eu fiz foi chegar na Delegacia  e declarar que eu tinha matado a dita cuja. Falei ao delegado.
         -  Foi eu que matei a mulher.
       O delegado olhou para mim. Estudou a minha fisionomia com um ar de náusea. E não acreditou. Lá no fundo de sua experiência com marginais descartou a hipótese de eu ser um criminoso. Mesmo assim mandou-me trancar por um dia em uma sela. Claro que não encontrou ainda o criminoso. Não se encontra um criminoso da noite para o dia. Mas tem certeza que não sou eu.
          Quando me pôs em liberdade eu fui para casa, certo de que o plano estava começando a dar resultado. E logo me esqueci da advertência do delegado que me dissera, na minha saída.
         - Não me apareça mais aqui.
       Voltei lá mais algumas vezes. Graças a Deus era o mesmo delegado de plantão. Eu disse as mesmas coisas, como um menino que estava se fazendo de afogado. Tinham cometido outro assassinato. Estava sempre havendo crimes na cidade. Fui preso de novo pelo desaforo. Desta vez dois dias. Das outras vezes não fui mais trancafiado. Estava me tornando uma figura folclórica na cidade: certas pessoas já declinavam uma para as outras:
           - Lá vem o assassino.
           Estava tudo dando certo.
      Foi então que a minha mulher, seu amante e meu filho chegaram. Eu sabia muito bem em que  apartamento eles estavam. Morávamos no mesmo condomínio. Fui lá mais ou menos à meia noite. Mas precisei primeiro saber se meu filho estava com ele na hora da minha visita. Telefonei perguntando pelo garoto. Não estava. Tinha ido ao shopping Muito bem. O plano está quase sendo concluindo
       Antes de sair fui ao quarto do meu filho, e reli a história infantil do menino brincando de morrer afogado. E comecei a rir e ficar  sério ao mesmo tempo. Fechei o livro, com tanta força que matei um pequeno inseto que atravessava as suas paginas. Peguei o meu revolver na gaveta do criado mudo de meu quarto. Com muito cuidado o enrolei em uma flanela vermelha. Apaguei a luz do meu quarto e me dirigir ao apartamento deles.
         Subi o elevador em direção ao sexto andar. O numero do apartamento era 666. Estremeci. Toquei a campainha. A minha ex - mulher me olhou pelo olho mágico. E viu meu rosto deformado. Abriu a porta. Entrei e disparei bem na sua testa, quase a queima roupa. Enquanto ela morria  nos braços de seu amante eu aproveitei o descuido para liquidá-lo. Os dois caíram juntos. Limpei a arma com a flanela que eu tinha trazido e deixei a arma no chão ao pé do cadáver.
            Retirei-me silencioso e sorrateiramente.
           De manhã eu estaria na Delegacia. O delegado me passaria mais uma recriminação e me mandaria para casa. e eu iria embora satisfeito com o plano realizado. Aí terminaria a minha história para a minha felicidade e a de meu filho. Ele até poderia chorar um pouco em meu ombro pela morte de sua mãe. Mas era forte e jovem e logo esqueceria toda a tragédia.
            De manhã cheguei a delegacia e disse ao delegado;
            -  Foi eu que matei a minha mulher e seu amante.
           O delegado recebeu-me indiferente e disse;
           - Não. Você não os matou. Já pegamos o criminoso. Veja ele ali, está na sela. Era o meu filho que estava detrás das grades. Sem ter o que dizer, falei de novo:
            - Mas fui eu quem os matou. Meu filho está fora disso

         Vou explicar o que aconteceu. Logo que eu saí meu filho chegou. Invadiu o local do crime. Pegou a arma. Tudo porque fui ler um conto infantil com o espírito maligno de um adulto.




o filme perdido


Para quem estiver na terrinha neste período

Geraldo

CANTIGA DE AMIGO

Onde estão os amigos
De outrora?
Onde estão as amizades
Da infância?
Que compartilharam
Nossos perigos
E apascentaram
Nossas ânsias.
Em linhas paralelas
Na distância?
Onde estão os sorrisos
Marotos
Das cumplicidades
Divididas
Onde estão onde estão?
Estão além do aquém
Dos mistérios mortos

De nossas vidas?

(Geraldo Borges)

Gervásio


Paes engarrafa o Rio

Gnomonia digital

(Leo Almeida)

Estava lendo “Santo Sujo”, de Humberto Werneck, a biografia de Jayme Ovalle, e me deliciando com a legendária “Nova Gnomonia” desenvolvida pelo sujo santo Ovalle e registrada por Manuel Bandeira. Trata-se de uma categorização de homens, uma espécie de lista bem definida de tipos humanos, algo similar ao que o argentino J.L.Borges faz com os tipos de animais e que Foucault cita em “A palavra e as coisas”. Pensei imediatamente em meus amigos, tentando compor uma ou inúmeras características que os unissem e separassem, e pelo método analítico, como um antropólogo, ou psicólogo, eu os colocaria em categorias distintas, em compartimentos muito singulares. Muito difícil o tal trabalho. Mas acabei, dentro das várias tentativas que empreendi, coisa de quem não tem o que fazer, percebendo que meus missivistas eletrônicos carregam uma certa cara, muito específica, nas mensagens que me enviam por e-mail. Faça o seguinte: pense nos seus contatos, na sua lista de amigos no provedor em que mantém seu e-mail e você facilmente poderá identificar essas criaturas. Assim, cheguei a essa minha gnomonia digital:

Os Anjos – são normalmente chatos, a gente até gosta deles (fazer o quê, né?), mas nos enchem a caixa postal com mensagens edificantes, normalmente acompanhadas de um “para sua reflexão”. Os “Anjos” são pessoas boas, doces, ingênuas e muitas vezes, torno a repetir, chatas. Nos chegam com mensagens religiosas anunciando milagres, bondades, exemplos morais. Noutras, nos disparam suas correntes para alcançar o céu. Incluí nessa categoria todos os místicos, pois nem só de carismáticos e evangélicos é feito o mundo. Assim, recebemos mensagens de E.Ts. e anúncio do fim do mundo por um choque cataclísmico de um asteroide. Outro dia me enviaram uma mensagem dizendo que em 2012 passaria por aqui um planeta chupão que nos levaria, a nós os escolhidos, para um lugar melhor, ou será que era o contrário? Eu não presto muita atenção nesse tipo de mensagem e quero confessar aqui que normalmente deleto, sem ler, as mensagens dos “Anjos”. Essas pessoas caminham por Buda, Jesus, Astrologia, Ufologia, Chatologia, Nazca, Jerusalém. Recebo imagens de Cristo, de Maria, de galáxias, de Deuses e alguns diabos também. Os “Anjos” gostam de nos desejar boa semana, bom dia, bom trabalho. Também são mestres em me avisar que Jesus me ama e que morreu por mim. Ah, e só pra me emputecer de vez, adoram mandar beijos no coração. É mole?

Os Putos – As mensagens dessas figuras normalmente trazem, por compromisso ético, um aviso “Cuidado ao abrir”. Está dada a deixa para um quase Atlas de Anatomia que acabamos de receber. Me vêm desses amigos um festival enorme de vaginas, e peitos, e fodas, e transas, que explodem na tela do PC sem pedir licença. Por eles aprendi o que é um himem, como se faz uma operação de mudança de sexo e uma lista de cornos e adúlteras. Haja close de cus, e bundas, e xotas, e pirocas, trabalhados pelo Photoshop. O mais comum é receber um arquivo com o seguinte assunto: “Confiou no namorado, caiu na net” ou então qualquer nome feminino no diminutivo “Patricinha, Sheylinha, Norminha...” e, é claro, o indefectível “Cuidado ao abrir”. Sempre sabemos o conteúdo da mensagem que um “Puto” (ou “Puta”, quero deixar claro, pois existem mulheres também nessa categoria) nos envia. Os anexos que suas mensagens nos trazem não podem ser vistos por menores, nem por certos maiores. Um “Anjo” nunca poderia ver uma mensagem de um “Puto”.

Os Ongues – São aqueles que, preocupados com a extinção do bicho de pé da praia do Poço, nos encaminham enormes abaixo-assinados para preservação da espécie. São normalmente pessoas muito boas, de boa índole, e quase tão chatas quanto os “Anjos”. Por serem tão meigas, gostam de nos enviar apresentações em PPS com fotos de animais, de crianças, de paisagens, todas elas com o fundo musical de Richard Clayderman ou algo tão horrível quanto. Os Ongues também gostam de encaminhar notícias sobre poluição, buraco da camada de ozônio, o fim de uma floresta, o efeito estufa, enfim, eles são uma espécie de Green Peace digital, sempre atentos para nos infernizar com suas mensagens. Um “Ongue” não se contenta enquanto você não assinar aquela lista que pleiteia a libertação da baleia orca que estava em Free Willy ou então para que não se usem peles de animais. Um “Ongue” é sempre paradoxal, ou te encaminha uma mensagem pela liberdade total de expressão ou uma abaixo-assinado contra o aborto.

Os vermelhos – Você reconhece um deles pelo assunto de suas mensagens: são sempre temas muito sérios, muito reais e, principalmente, políticos. Encaminham longas entrevistas de economistas sobre a crise mundial, de políticos sobre a reforma fiscal, de prefeitos sobre a responsabilidade fiscal, de artistas sobre a situação social do país, enfim, são especialistas em nos encher a caixa postal com assuntos muito sérios e muito chatos também. Os vermelhos são engajados, têm seu partido muito bem definido, ou são petistas (e dentro dessa subcategoria há os Intragáveis, fanáticos como qualquer “anjo”) ou anti-petistas, afinal de contas a política do Brasil, nos últimos tempos, tornou-se um cenário maniqueísta por excelência. Há ainda a já conhecida categoria bostal de Coxinhas, que propagam mentiras deslavadas e defendem um Brasil puro a base do Anauê Anauê. O que os une é justamente a visão messiânica que carregam: todos vão salvar o país da bancarrota e da crise. Um vermelho deve sempre ser tratado com cautela, pois pode ser que ele não fale nunca mais com você, no caso de alguma mensagem que fira seus pontos de vista. Os vermelhos raramente são putos e normalmente são mau-humorados. Os coxinhas as vezes são anjos e ongues, mas a burrice os condena a não ler muitos textos que assinam.

Os Tiriricas – Esses são muito bem-vindos, sempre. Suas mensagens são sempre piadas, das mais risíveis às mais desprezíveis. Os tiriricas, não se contentando em lhe enviar a piada (que você já leu diversas vezes, pois elas se repetem), ainda lhe contam pessoalmente, quando vocês se encontram num bar. E tome piada de português, de adúltero, de viados (com i mesmo, fica mais i-ncisiva a viadagem), de bêbados, de loiras etc. Um tiririca é, por princípio e essência, politicamente incorreto, afinal de contas, fosse o contrário, não haveria piada nunca. Um tipo de mensagem dos tiriricas é aquele indefectível “Frase do dia”. Quanta inteligência e poder de síntese nos trazem essas mensagens. Os tiriricas gostam de enviar tiras de sites de piada, vídeos, flagras, com o objetivo único de nos fazer rir. Suas mensagens, na maior parte das vezes, termina com a figura de um ratinho simpático morrendo de rir e o som disparando uma gargalhada. Muito cuidado ao abrir a mensagem de um tiririca, ele adora pegadinhas, sustos. São pessoas muito divertidas e às vezes muito sérias na vida real. Um tiririca pode ser um anjo decaído.

Os Treches – também conhecidos como “papa-defuntos”. O título já diz tudo, ou seja, ele identifica aquele seu amigo que adora enviar imagens que consegue com um amigo policial ou bombeiro, contendo corpos estraçalhados, muito sangue e tripas e tendões. As mensagens normalmente vêm acompanhadas de um singelo aviso “Conteúdo forte”, isso quando ele se lembra de te alertar que se trata de desgraça em desfile. E haja estômago. A gente abre a mensagem e cai logo uma perna no colo; depois uma cabeça decepada, um olho esmagado. São cenas de acidentes de carro, de moto, de avião. Corpos atacados por animais selvagens. Uma sucessão de desgraças que, se você não é um treche, tira sua alegria na hora e te dá uma vontade danada de dizer ao treche que copule-se. Notei que uma certa recorrência de “Putos” são “Treches” e isso talvez se explique pela psicanálise na junção de Eros e Tãnatos. Será?


Os bate-volta – Esses não têm um tipo comum de mensagem, normalmente são mais sérios, menos “Tiriricas”. O que os caracteriza é o fato de que, num universo de mensagens que vão e nunca voltam, ou seja, espécie de mensagem retórica que não necessita resposta, eles insistem em responder. Um “Puto” envia as fotos de uma morena, e eles retornam uma resposta comentando a morena. Um “Ongue” lhes pede que proteja a sibipiruna azul do piauí e eles retornam uma resposta, que nunca é pedida devo destacar, comentando a situação do cerrado. Um “Tiririca” lhes conta uma piada e eles, sem inspiração para comentar, mas pressionados pela necessidade inexplicável de responder, devolvem a mensagem com um singelo KKKkkkkkk ou um ...rs. Os “Bate-volta” não deixam mensagem sem resposta e a impressão que me passam é que sofrem pela ausência de “Bate-voltas”  na sua lista de amigos.

Os Velhinhas-de-taubaté – também conhecidos como “Filhos de Orson”. Para eles, tudo é verdade. São aqueles que mais distribuem correntes pela net. Pensei em batizá-los como “Correntistas”, mas percebi que o seu problema é o excesso de crença. Sabe aquelas mensagens que te chegam dizendo que ao repassá-las para o maior número de amigos estarás ajudando uma criança a se curar do Fogo Selvagem na Patagônia? Aquela que afirma que a Microsoft vai te dar um Laptop novinho em folha caso comunique imediatamente a teus amigos a novidade tal? Ou então aquela mensagem que você já leu duzentas vezes e que diz que o filho de alguém está sumido há duzentos anos e o seu clique irá ajudar a resgatá-lo em Bornéus? Pois são essas as mensagens que os “Filhos de Orson” mais amam. Esse tipo de missivista também se caracteriza por disseminar as famosas lendas urbanas: o seqüestro e a extirpação de rins, os ataques de monstros, os chupa-cabras, o roubo de gasolina, etc. Apesar de assemelharem-se aos “Anjos”, o que realmente os diferencia é, por mais paradoxal que seja, a crença absoluta no lixo que circula pela grande rede. Toda “Velhinha-de-taubaté” pode ser um “Anjo”, mas nem todo “Anjo” é “Filho de Orson”.

Essa é uma proposta simples e que não quer excluir o fato de que um “Anjo” pode ser um “Tiririca” e não abrir mão de ser um “Ongue”. Sei que normalmente um “Anjo” não tolera um “Puto” e por essa razão, sempre que envio mensagens tenho que selecionar meu público, afinal de contas, enviar uma mensagem contendo imagens eróticas para um amigo evangélico é o mesmo que enviar uma foto de FHC para um amigo petista, não é mesmo? Essas categorias permitem uma certa mobilidade, não são castas, e por essa razão me surpreendo às vezes com uma mensagem maliciosa que me é encaminhada por um “Ongue” com tendências a “Anjo” e fumos de “Puto”. Isso acontece sempre. Não sou “Anjo” nem “Treche”, mas tenho cá minha parcela de “Puto”, de “Ongue”, de “Vermelho” e “Tiririca”.



Tabatinga