domingo, 2 de fevereiro de 2014

terra do fogo - UMA HISTÓRIA DE AMOR, DESENCONTRO E ESPERANÇA




Com a editora Cilene Vieira e o poeta Salgado Maranhão
Por Menezes y Morais *

Edmar Oliveira, médico piauiense, escritor, blogueiro e militante do movimento da Reforma da Psiquiatria, incursiona agora pela areia movediça da ficção: publicou Terra de Fogo, romance, com relançamento anunciado para 2 de fevereiro, às 14h30, no Bar Botero, Mercadinho de Laranjeiras, Rio de Janeiro.

“Em breve estarei em Teresina para um lançamento oficial”, informa o autor. No programa carioca de fevereiro, Terra do Fogo deve circular de mão em mão ao som das canções de Chico Salles & Chabocão e Convidados, além da falação e recital poético, comuns nesse tipo de evento cultural.

ATREVIMENTO FICCIONAL

Terra do Fogo é o terceiro livro de Edmar Oliveira. Os dois primeiros são os ensaios que tratam da prática de saúde mental: Ouvindo Vozes (Vieira Lent, RJ, 2009), e von Meduna (Oficina da Palavra, PI, 2011). Escrevemos uma resenha dessas obras em 2013, que podem ser lidas aqui nesta página. É só ir descendo o cursor.

Edmar confessa que Terra do Fogo é o seu primeiro “Atrevimento ficcional num romance-histórico regional”. Eu diria que é também depositário autobiográfico, pelas conexões de vivência do autor, com o cruzamento das pistas ficcionais.
Vejamos alguns indícios: Edmar nasceu no Piauí e vive no Rio de Janeiro, o narrador de Terra do Fogo também. Edmar passou parte da infância na cidadezinha Dezessete, interior do Maranhão. O protagonista de Terra do Fogo idem.

MAIS COINCIDÊNCIAS

Conforme Edmar, Terra do Fogo “carrega lembranças da memória e do afeto, com personagens reais e fictícios”. É dedicado “à memória da minha tia Jacira, uma mulher bem à frente do seu tempo”.

A personagem principal de Terra do Fogo é Jaci, tia-madrinha do narrador. Jaci, como Jacira, é à frente do seu tempo: a personagem ficcional, no afã de encontrar a felicidade, desafiou convenções sociais estabelecidas no ventre de uma sociedade ossificada pelo conservadorismo.

Edmar revela que empreendeu “... uma viagem sentimental por onde andou naquele chão (maranhense). Terra do Fogo resulta de um trabalho de pesquisa, de memórias marcadas pelo afeto, e da imaginação que aqui ganhou asas”.
Não é preciso dizer mais nada. Terra do Fogo é um romance com alta dosagem autobiográfica. Fato que não agrega nem desagrega valor estético. Não destrata nem trata o romance. Fim de papo.

CONFLITOS DE UMA ÉPOCA

Voltando ao “romance histórico regional”, o poeta e letrista maranhense Salgado Maranhão, que amadurecera estética e politicamente em Teresina (PI), afirma na orelha do livro:

“Em Terra do Fogo o leitor encontrará os ingredientes de uma trama romanesca instigante, onde os conflitos de uma época se misturam a dramas familiares que envolvem amor, lealdade e traição, repaginados pelo olhar de alguém que se redescobre nas pegadas da sua infância”.

Esse “Alguém” é o protagonista-narrador de Terra do Fogo. O leitor não sabe o seu nome, nem o que faz. Mora no Rio de Janeiro e vai a Dezessete (MA), onde viveu quatro anos da sua infância.

A tarefa do personagem-narrador em Dezessete é entregar ao professor Alarico um dossiê que copiara dos anais do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Para isso vai a sua casa, onde o dono do dossiê vivera feliz ao lado da sua Jaci.

NÚCLEO TEMÁTICO

O leitor toma conhecimento dessa felicidade pelo narrador de Terra do Fogo, que convivera com eles durante quatro anos da sua infância. O núcleo temático central ganha corpo na família Alarico/Jaci.

O narrador reencontra Alarico viúvo de Jaci há quase 20 anos. Alarico é um verdadeiro herói aos olhos da infância do agora adulto narrador. Jaci é o “anjo” de Alarico, professor de história e militante comunista.

Estéril, ao lado do amor da sua vida, que tivera três filhos de relacionamentos anteriores, Alarico dedica o afeto paterno irrealizável ao sobrinho da amada.

A semente de ternura que Alarico plantara no coração do sobrinho da amada frutifica. Incluindo o ideário ideológico, a mitificação da URSS-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

EM BUSCA DA FELICIDADE

A admiração que a personagem-narrador externa por Alarico, também se revela sobre outro prisma à tia-madrinha Jaci, personagem no mínimo memorável. Ela buscou a felicidade diuturnamente.

Nessa odisseia a procura de si mesma, Jaci pariu três filhos. Duas mulheres que ganharam vida própria, citadas de passagem na trama. E um homem, filho do nazista Alemão, persona de destaque na tragédia que nomina o romance.

Alemão é agente secreto da ditadura getulista, vai para Teresina com a missão de desbaratar os incêndios criminosos que ocorrem nos casebres de palha do povo, tema de destaque na historiografia e na literatura piauienses.

Os incêndios criminosos são históricos, ocorreram também no Rio de Janeiro, no Brasil monárquico, com o mesmo objetivo: expulsar os pobres para mais longe das zonas urbanas.

Com esses ingredientes – “Alguém” com suas lembranças, o dossiê, Alarico comunista, o “anjo” Jaci, incêndios criminosos em casas de palhas em Teresina, a ditadura do Estado Novo (1937-45), a mitificação da URSS, a guerra fria – Edmar tece a teia ficcional de Terra do Fogo.

TEMPO FICCIONAL

Não há diálogos na narrativa, feita na primeira pessoa. Toda a trama do romance escorre pelas lembranças do narrador, no espaço temporal de uma noite, onde mais de meio século de dados históricos são desfiados entre uma ação memorial e outra, canalizando as atenções do leitor.

Um detalhe gera curiosidade no narrador. Por que Alarico demonstra indiferença diante o dossiê? Por que pedira ao sobrinho-afilhado de Jaci que pedisse cópias ao Arquivo Nacional? O que continha àquela papelada?

O documento é um capítulo da história da prisão e tortura que Alarico fora vítima do Estado policial instalado no Brasil, corporificado em cada interventor estadual, para sustentação da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas.

Alarico fora preso e torturado por agente de Getúlio, depois liberado da prisão graças à intervenção de Jaci, amante desse agente do Estado policial. Daí Alarico chamar Jaci de “o anjo que me tirou do inferno”.

Em liberdade, o professor do Liceu Piauiense se une a Jaci e migram de Teresina para a cidadezinha do interior do Maranhão. Quando conheceu Alarico Jaci tinha três filhos. Duas mulheres vivendo no Maranhão.

ÍCONES LITERÁRIOS

O filho homem morrera, quando “aparece” em cena pela primeira vez, na lembrança do narrador, está vivo e parece pular de dentro das páginas do romance. Trata-se do fantástico Afonso Henrique, que “desde cedo enlouquecera” e a diabetes o tornara cego. Convenhamos, é demais para um ser humano.

Terra do Fogo me remeteu a três ícones literários: Marcel Proust (1871-1922), Édouard Dujardin (1861-1949) e James Joyce (1882-1941). Em Proust, o aroma das flores de limoeiro, misturado à doçura do bolinho, desencadeia as memórias da infância.

O olfato faz jorrar a experiência sensorial que o leva a escrever a série de romances denominada Em busca do tempo perdido, com a qual, conforme alguns estudiosos, Proust inaugura o romance moderno.

Em Terra do Fogo, a paisagem da cidadezinha do interior, a casa da saudosa tia, a conversa com Alarico, a leitura do dossiê, deflagram um fluxo de memória do narrador. “... tinha voltado um pedaço de minhas memórias que eu não sabia que estavam comigo ainda”, diz ele, em solilóquio (pág. 11).

Com a leitura do dossiê o narrador monta o quebra-cabeça familiar Jaci/Alarico, a vida sentimental dela, a militância política dele, as injustiças sofridas etc.

Em Édouard Dujardin, o tempo ficcional na novela A canção dos loureiros (1888) acontece em um dia. O tempo ficcional de Terra do Fogo é mais minimalista: uma noite.

Joyce, no também mítico romance Ulysses (1922), o tempo ficcional se esgota em 24 horas, no qual desfilam temas como judaísmo, comunismo, paródias, pastiches. Terra do Fogo também fala de comunistas, judeus etc.

Joyce bebeu na fonte de Dujardin: A canção dos loureiros inaugura “o monólogo interior” na literatura. Joyce confessou a influência, no gesto de honestidade intelectual, ao poeta, crítico, escritor e tradutor Valéry Larbaud, autor da versão de Ulysses para a língua francesa.

O que demonstra: Edmar Oliveira tem um arquétipo literário exemplar. O minimalismo do tempo ficcional, a memória puxando a trama, a humanidade que imprime aos seus personagens, tudo é promissor num autor que nasceu em 1951.

MEIO SÉCULO DE HISTÓRIA

Terra do Fogo concentra em seu bojo mais de meio século de história do século XX. Fala em 1940 e 2001. Tempo que abarca ascensão e queda das ditaduras do proletariado (1917-91), do nazifascismo – Itália, Benito Mussolini (1883-1945), Alemanha – Adolfo Hitler (1889-1945).

No Brasil, o tempo histórico que imprime carnadura ficcional a Terra do Fogo se reporta às ditaduras de Getúlio Vargas no Estado Novo e do militares golpistas (1964-85).

O golpe militar teve apoio de alguns civis. Inclusive dos governadores do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, do Piauí, Petrônio Portela, do Maranhão, José Sarney, de Minas Gerais, Magalhães Pinto. Depois Lacerda rompeu e foi cassado. Petrônio chegou a ser ministro da Justiça da ditadura. E Sarney, no Congresso Nacional, presidio o PDS, partido da ditadura.

LIXÃO DA HISTÓRIA

O nazifascismo foi pro lixão da história. No monturo histórico também estão as ditaduras estado novista e dos militares golpistas. E o comunismo que o professor Alarico apologizou ao narrador quando criança, também deu com os burros n’água.

A tentativa de mudar a desumanidade perversa e excludente do capitalismo via classe operária – ou concretamente pela sua vanguarda – redundou na maior falácia histórica do século XX.

A ditadura do proletariado desmoronou no mar de lama da tirania, dos campos de concentração, da corrupção, do atraso econômico, cultural e espiritual em 1989-91. O que existe neste surpreendente século XXI como o protótipo do comunismo são a Coreia do Norte, Cuba e China.

Cuba está mudando a passos de tartaruga, alterando o seu ainda incipiente capitalismo de Estado. A China é ditadura política e capitalismo de Estado, com a contradição e a perversidade excludente da mais valia. Por exemplo, as famílias chinesas que têm filhos dissidentes do partido comunista são fuzilados e recebem do Estado policial a fatura das balas.

Mas, as ditaduras não são eternas. “Nós que amávamos tanto a revolução” (Dany Cohn-Bendit), movidos pelo sentimento humanitário para pôr fim ao analfabetismo, à fome, à opressão, enfim, toda forma de miséria, de “exploração do homem pelo homem”, não sabíamos que a barbárie acontecia por traz da “cortina de ferro”.

REPRESSÃO MORTAL

Quando as denúncias vazavam da cortina de fumaça do “socialismo real” os dirigentes brasileiros, por exemplo, diziam que era “mentira da imprensa burguesa”. Mas a era tudo verdade. A repressão mortal e a mentira eram uma arma política do estado policial socialista.

Dirigentes-candidatos a tiranos como Luiz Carlos Prestes, não sentia escrúpulos em chamar o ditador Joseph Stálin de “paizinho”, “guia genial da humanidade” etc. Stálin fez de tudo. Até o ano de sua morte mandou fuzilar 20 milhões de opositores. Ultrapassou os colegas tiranos Benito Mussolini e Adolfo Hitler.

Hitler matou mais de seis milhões de pessoas nos campos de concentração, incluindo judeus (a esmagadora maioria), comunistas, pederastas, ciganos.

Mas, como dizia Oswald de Andrade (1890-1954), “o ponteiro do relógio da história gira pra frente”. Oswald ainda flertou com o Partido Comunista, na lua de mel com Pagu, pseudônimo da escritora Patrícia Galvão (1910-1962), autora do romance Parque Industrial.

ALERTA VERMELHO

Quem primeiro, até onde eu sei, fez o alerta histórico contra a tirania comunista foi Milovan Djilas. O dirigente comunista iugoslavo mostrou as entranhas do monstro por dentro em A nova classe (escrito entre 1954-7, publicado no Brasil em 1971).

Milovan Djilas foi preso e condenado a três anos de trabalho forçado porque criticou o comunismo. Escreveu A nova classe na prisão, de onde os originais saíram clandestinamente. Descoberto, foi condenado a mais sete anos.

No Brasil, o jornalista, escritor e dirigente comunista baiano Osvaldo Peralva (1918-1992) lança o clássico O Retrato (1962), hoje esquecido. Peralva foi repórter internacional, esteve na URSS no final dos anos 1950. Falava russo corretamente, viu as entranhas e os horrores da ditadura stalinista.

Conhecemo-nos em junho de 1988 numa feira do livro no Clube da Imprensa, quando Peralva me autografou um exemplar de O Retrato, onde entre outras coisas narra os porões da KGB, a polícia política da ditadura soviética.

“Não exagero, não invento, não pilherio. Aconteceu assim”, diz Peralva (página 103). O Retrato está fora de catálogo, mas pode ser encontrado nos sebos, inclusive virtuais. Quem quiser ler, ou imprimir, por favor, vai o link:
www.bvce.org/DownloadArquivo.asp?Arquivo=PERALVA_Osvaldo...

GULAG E A COZINHEIRA

O livro que faz mais repercutiu mostrando o leviatã sanguinário da URSS é o de Alexandre Soljenítsin, Arquipélago Gulag, publicado pela primeira vez em Paris, em 1973. A primeira edição brasileira é de 1976.

A obra documenta a barbárie dos campos de trabalho forçado da União Soviética, por onde sofreram na via crucies cerca de 66 milhões de pessoas, conforme Soljenítsin.

Quem também se debruçou sobre a (pré-histórica) repressão política do comunismo foi o filósofo francês André Glucksmann, em A Cozinheira e o Canibal, publicado na França em 1975 e no Brasil em 78.

“Os campos nazistas são sempre identificados. O câncer é facilmente localizado. E os campos russos? São russos e também marxistas?”, pergunta Glucksmann.

Lembro-me ainda dos artigos de Charles Bettelheim, publicados no Brasil nos Ensaios de Opinião em 1975, entre outros.

RÁDIO MOSCOU

Esse temário (comunismo e guerra fria) circula com desenvoltura no romance de Edmar Oliveira. O narrador de Terra do Fogo cresce deslumbrado com a apologia comunista que ouvira quando criança do professor Alarico:

“Lembro-me dele com quarenta e poucos anos me convidando para ouvir baixinho no seu potente rádio de ondas curtas, a rádio Central de Moscou. Um programa de catequese do país comunista feito especialmente para o Brasil, em português. (...) Sabia que era algo proibido, mas Alarico me convencia de que era algo bom e que iria mudar o mundo”, (página 19).

Mas, vinte anos depois, na noite insone na casa do querido viúvo, o narrador lembra que o “velho Alarico” constatara:

“Os regimes que se implantam pela força só se sustentam na repressão da sociedade civil, mas mais
cedo ou mais tarde agonizam, e as pessoas sentem alivio de terem vivido sob o terror...” (Página 158).

Enfim, o romance memorialista de Edmar Oliveira “é uma história de fogo e paixão”, diz o seu narrador.

Terra do Fogo é também uma história de amor e desencontros, de denúncia social e de esperança, de humanidade e de desumanidade, na qual Jaci divide com Alarico o protagonismo da certeza e da incerteza.

É semelhante à vida real.
Com Menezes e Marcos Freitas
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 *Menezes y Morais
Jornalista, professor, escritor e historiador.

SERVIÇO
Terra do Fogo (romance), Vieira & Lent Casa Editorial, 2014.
Capa: Alcides Amorim, sobre foto de Paulo Tabatinga.
Preço não revelado. 175 páginas.
VIEIRA & LENT Casa Editorial.
Local: Botero bar do Mercadinho de Laranjeiras.
Show: Chico Sales & Chabocão.

No Rio de Janeiro, Terra do Fogo pode ser encontrado no Empório das Letras - hall do Cine São Luiz, Largo do Machado; Blooks Livraria - hall do Espaço Itaú de Cinema, Botafogo (antigo Arteplex); Livraria Argumento da Rua Dias Ferreira, Leblon. Livraria NOBEL - Shopping Downtown, Avenida das Américas, 500. Livraria GNOSIS - Shopping Grande Rio, Baixada Fluminense. E nos sites:
www.vieiralent.com.br
www.livrariacultura.com.br
www.travessa.com.br
www.livrariasaraiva.com.br
Em Teresina (PI), na Toccata, e na Livraria Universitária do Riverside Shopping.

Um comentário:

Roxane disse...

A crítica é quase um livro...